Por Denise Fernandes
E de repente, leio na internet a notícia de um motorista de ônibus que foi linchado porque passou mal e bateu o veículo que dirigia. Até li de novo porque achei inacreditável. Em meio às fofocas das celebridades, receitas e toda espécie de superficialidades em que os especialistas advertem, surge a morte de um homem num linchamento: Edmilson dos Reis Alves.
Sabemos tão pouco sobre os seres humanos e todo seu potencial de barbárie que parece inacreditável que o mundo funcione bem (ou até que funcione). Um linchamento assim mostra toda a podridão de nossa sociedade, coberta de maquilagem, silicone e paredes que encerram pessoas, desejos. Uma violência desse tamanho mostra a solidão do homem, traz um velório permanente: a gente morreu junto com esse homem linchado. Preciso, preciso acender uma vela. A vela acesa pode conter um pedido de socorro. E esse motorista pode ser uma espécie de Jesus. Quando a gente tá no ônibus, se sente meio na cruz, às vezes; e morrer assim eleva o sujeito pro nível de sofrimento do Mestre.
Não é o Diabo o inimigo de Cristo, mas a falta total de amor mesmo, que é preenchida por esse prazer destrutivo. Não é o demônio que destrói Jesus.
Sei que é arrogância minha ter perdido o medo do demônio no meio do Caminho mas, diante da crueldade de alguns seres vivos, acho o demônio fraco, com pouco poder. O demônio conhece a eternidade, o além morte; o demônio conhece limites. O ser vivo desconhece seus limites, ultrapassa-os, pode destruir o outro.
Há pouco tempo, retomei o crochê em minha vida. O ponto por ponto dá uma calma magnífica. E ainda é uma atitude. Por isso a gente vê por aí no trem ou no ônibus mulheres que carregam linha, agulha, vontade e tecem um pouco pelo caminho. O demônio é inimigo do crochê, que traz consigo uma proteção mística: a paciência do ponto por ponto nos isola dos arroubos do negativo. Na concentração de quem tece, tudo é mais claro, mais possível. Porque tecemos nossas vidas, nossas palavras e é bom estar lúcido na viagem. A morte pode estar escondida num linchamento tão absurdo que há uma liberdade inédita a partir desse Jesus motorista de ônibus: tanto faz...
A humanidade vai questionar o pecado depois de tanta barbárie. O mal não se esconde num pecado que não é pecado. O mal é a violência que não se esconde. Não estou bem certa que não amar a Deus e não acreditar nele seja um grande pecado. Não creio que os ateus estejam errados dessa forma moral. Mas não saberia o que dizer a um linchador e não gostaria de dar a ele a dádiva do meu silêncio e nem a possibilidade de algum perdão.
Talvez haja uma solução para a humanidade, que passe por condenar esses dez mandamentos ridículos (com todo respeito a Moisés e a turma do Velho Testamento). Mas também não se trata de abrir o Alcorão ou imitar Buda. Há Verdade em alguma religião? Se há, o Céu nos Ama. E nos escuta. Talvez tenhamos que jogar tudo fora, porque tudo que temos de fé, religião, educação, ciência e ensinamento ético não está servindo para nada. Talvez tenhamos que admitir que estamos na pré-história de nós. Talvez seja até bom implorar para Deus, se ele existir, uma nova chance para nós. Há um dilúvio na perspectiva da humanidade. Porque se Deus existe, ele deve estar meio aborrecido mesmo depois desse linchamento. Se fosse Deus, eu estaria meio cansada, de saco cheio. Quando eu penso ainda quanta gente vai ter um Natal de merda e que ainda teremos um carnaval sem graça em 2012, vou comer outro pedaço de bolo. E Deus, o que faz Deus nessas horas, como se diverte? Graças a Deus, tenho a gula, os sabores do mundo.
E se Deus não se diverte e fica bravo? E se Deus morrer de tristeza ou enfraquecimento, de desistência ou muito aborrecimento por não ver Natal, transcendência, respeito, dignidade. Vocês não têm medo? Se vocês não têm, eu também não tenho, perdi, perdeu a graça acreditar. Joguei tudo fora. Fui linchada de repente, parti. Não, eu nunca soube porquê.
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