Por Amilcar
Neves*
Tinha a cidade aos pés desde a noite anterior, uma cidade
sobre rodas motorizadas (não se via uma bicicleta sequer, somente rodas ou os
pés da gente que anda a pé). Ao fundo, barcos: lanchas, veleiros e um iate fundeados
no Iate Clube Veleiros da Ilha, uma ou outra lancha pequena passando preguiçosa
a longos intervalos no mar cinzento, reflexo de um céu forrado de nuvens
escuras e varrido por um nordeste que mexia o ar mais do que esquentava, um
clima ótimo para deixar toda arrepiada na beira da praia uma mulher de biquíni.
Apesar do ângulo aberto contado a partir do morro, nas encostas do Menino Deus,
não via tudo o que havia: o prédio ao lado obstruía-lhe a visão das pontes e
suas circunvizinhanças. Espiar a Hercílio Luz, então, só na imaginação: como o
fazem há tempos aqueles que um dia a conheceram como ponte que suporta o
trânsito cotidiano da cidade e como o farão, daqui a pouco, aqueles que
chegaram a conhecê-la como monumento em acelerada decrepitude por obra da
omissão de vários governantes, cujos nomes deverão ser gravados a fogo num
monumento que se erguerá no lugar da estrutura metálica pênsil, e por desobra
de muito dinheiro que, endereçado à HL, nunca chegou ao destino, como se a
ponte já não houvesse mais e, portanto, nada nem ninguém pudesse chegar ao
destino, sequer o dinheiro destinado a salvá-la (quando, antes, bastava
mantê-la).
Diz o Houaiss que, em Estatística, dá-se à "falta de atividade, de
trabalho; inércia, inatividade" o nome de desobra. Estatisticamente a
Ponte cairá um dia, e nossos governos têm trabalhado arduamente para antecipar
o quanto possam tal data fatal. Esquecem que, quando a queda da Ponte
acontecer, ela deixará de lhes ser um valioso pretexto para, digamos assim,
canalizar verbas e recursos outros.
À esquerda, o que resta de Mata Atlântica ao redor da subida do Senhor dos
Passos bloqueia a visão das bocas Oeste do túnel duplo que liga a Prainha ao
Saco dos Limões, desprezando o José Mendes à sua direita, para quem vai do Centro
para o Sul da Ilha, para satisfação e tranquilidade do Júlio de Queiroz, que
mora de frente para o mar sem o barulho contínuo e irritante de cidade em seu
portão. Alguém teve a inspiração de dar ao caminho pelas entranhas do Mocotó o
nome de Antonieta de Barros, uma mulher bem negra que foi professora
respeitadíssima (quando se respeitavam os professores, para não dizer mais) por
seu trabalho no magistério durante a primeira metade do século passado, mas o
corporativismo da Assembleia Legislativa resolveu puxar um pouco a si a
homenagem, batizando o túnel como Deputada Antonieta de Barros - ainda que ela
tenha sido eleita a primeira deputada de Santa Catarina, sua obra mais
significativa foi a de professora.
Restaria o mar à frente, com a Baía Sul toda desdobrada aos olhos - desde que o
Fórum e o Tribunal de Justiça, de alturas excessivas, não fragmentassem de novo
a paisagem, ladeados por construções mais humildes que afastam o mar de quem
está em terra, a pé ou mesmo motorizado: uma passarela do samba, de costas para
o mar, que não para de crescer cada vez mais feia, tendo já atropelado o local
em que um papa rezou missa, e uma imensa caixa de sapatos toda fechada, de
tampa verde, a que se dá o nome de centro de convenções ou algo similar. Na
borda do mar desenhada já por aterros, construções desnecessárias para o local
bloqueiam a simples visão do mar; em paralelo a elas, pistas de alta velocidade
bloqueiam o mero acesso ao mar.
*Crônica publicada no jornal "Diário
Catarinense" de 23.11.11
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