Por Amilcar Neves*
De manhã quase cedo, a mãe, dedo em riste, dirigia-se à
professora:
– Quem te disse que tens o direito de chamar a atenção da minha filha? Nem que
fosse em particular! Sabes muito bem que eu é que pago o teu salário, a tua boa
vida. Colégio, por aqui, tem um monte. Se eu tiro a Dannyelly desta bosta de
escola e outros pais fizerem o mesmo por causa dessa tua mania de querer impor
ideias antiquadas, ultrapassadas, e de querer obrigar os alunos a estudar e fazer
tarefas em casa, perturbando a tranquilidade deles, não só tu perdes o teu rico
empreguinho como a escola fecha em dois tempos. Então, escuta bem, que não vou
repetir: estou indo agora mesmo fazer uma reclamação formal à direção do
estabelecimento. O próximo passo será registrar queixa no Procon [sigla de
"Procuradoria de Proteção e Defesa do Consumidor", segundo o
"Novo Dicionário Aurélio" versão 6.0.6]. Depois é B. O. [boletim de
ocorrência] direto.
No início da tarde, o rapaz, angustiado, procurou a assistente social:
– Não sei mais o que fazer, preciso conversar com alguém, e necessito dessa
conversa agora, antes que eu caia de vez em desespero. Agradeço demais sua
paciência, sei que é parte do seu trabalho, mas é que estou desorientado, me
sinto perdido, não tem adiantado nada a minha mãe falar com ela, a mãe dela
conversar com ela, e ainda tem o nosso filhinho, isso é o que me preocupa mais,
claro, a nossa situação, a situação que estamos vivendo também me enche de
preocupações e assombros, mas a senhora sabe, um filho sempre é um filho, o que
a gente fizer com ele agora vai marcar toda a vida dele, o fato é que ela não
se contenta mais com nada, diz que quer muito conhecer Buenos Aires, e Paris, e
as ilhas gregas, e me xinga dizendo que não tenho dinheiro nem para levá-la a
Biguaçu enquanto meu primo, do tráfico, tem vida boa, de rei, e ela só ralando,
a senhora tem um tempinho para me escutar um pouco?, pois estou desesperado,
não sei o que fazer...
Ao final do dia, o executivo, contrariado, mede palavras ao falar com o guarda:
– Não se pode correr riscos inutilmente, o Tenente Soiza aí sabe muito bem do
que estou falando, por isso tenho amigos importantes e dedicados na alta cúpula
do Governo, na alta magistratura do Tribunal e no alto comando da Polícia,
gente que resolve. Não tenho amigos no alto escalão da Cultura porque isso não
leva a nada. O que quero lhe dizer, Tenente Soiza aí, com todo o respeito pelo
seu uniforme, é que lhe restam três opções: aceitar numa boa esse cinquentinha
aí pra cerveja do final de semana e livrar a minha cara, fazer que não viu e
não sabe de nada e sair de fininho no preju, ou terminar de preencher a bosta
dessa multa por estacionamento em vaga de aleijado e se arrepender depois pelo
resto da vida. A escolha é sua e eu não tenho mais tempo a perder.
Pelo meio da noite, na Câmara, logo após a hora do jantar, dois vereadores que
deveriam estar em sessão colocam-se frente a frente a uma mesa de canto na
cantina daquela casa do povo e olham-se fixamente em silêncio absoluto.
Observando-os atentamente percebe-se que suas fisionomias mudam, de forma quase
imperceptível, assumindo expressões de surpresa, desgosto, alegria,
contrariedade, entusiasmo, concordância e juras solenes e profundas:
A fim de evitarem aborrecimentos com esses bagulhos eletrônicos que tudo ouvem
e tudo veem e tudo leem e tudo registram, comunicam-se por telepatia quando
precisam tratar de assuntos impublicáveis ligados a poder e dinheiro.
*Conto publicado no jornal
"Diário Catarinense" de 15.06.11
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