quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Estrogonofe

Por Amilcar Neves*
 
De manhã quase cedo, a mãe, dedo em riste, dirigia-se à professora:


– Quem te disse que tens o direito de chamar a atenção da minha filha? Nem que fosse em particular! Sabes muito bem que eu é que pago o teu salário, a tua boa vida. Colégio, por aqui, tem um monte. Se eu tiro a Dannyelly desta bosta de escola e outros pais fizerem o mesmo por causa dessa tua mania de querer impor ideias antiquadas, ultrapassadas, e de querer obrigar os alunos a estudar e fazer tarefas em casa, perturbando a tranquilidade deles, não só tu perdes o teu rico empreguinho como a escola fecha em dois tempos. Então, escuta bem, que não vou repetir: estou indo agora mesmo fazer uma reclamação formal à direção do estabelecimento. O próximo passo será registrar queixa no Procon [sigla de "Procuradoria de Proteção e Defesa do Consumidor", segundo o "Novo Dicionário Aurélio" versão 6.0.6]. Depois é B. O. [boletim de ocorrência] direto.


No início da tarde, o rapaz, angustiado, procurou a assistente social:


– Não sei mais o que fazer, preciso conversar com alguém, e necessito dessa conversa agora, antes que eu caia de vez em desespero. Agradeço demais sua paciência, sei que é parte do seu trabalho, mas é que estou desorientado, me sinto perdido, não tem adiantado nada a minha mãe falar com ela, a mãe dela conversar com ela, e ainda tem o nosso filhinho, isso é o que me preocupa mais, claro, a nossa situação, a situação que estamos vivendo também me enche de preocupações e assombros, mas a senhora sabe, um filho sempre é um filho, o que a gente fizer com ele agora vai marcar toda a vida dele, o fato é que ela não se contenta mais com nada, diz que quer muito conhecer Buenos Aires, e Paris, e as ilhas gregas, e me xinga dizendo que não tenho dinheiro nem para levá-la a Biguaçu enquanto meu primo, do tráfico, tem vida boa, de rei, e ela só ralando, a senhora tem um tempinho para me escutar um pouco?, pois estou desesperado, não sei o que fazer...


Ao final do dia, o executivo, contrariado, mede palavras ao falar com o guarda:


– Não se pode correr riscos inutilmente, o Tenente Soiza aí sabe muito bem do que estou falando, por isso tenho amigos importantes e dedicados na alta cúpula do Governo, na alta magistratura do Tribunal e no alto comando da Polícia, gente que resolve. Não tenho amigos no alto escalão da Cultura porque isso não leva a nada. O que quero lhe dizer, Tenente Soiza aí, com todo o respeito pelo seu uniforme, é que lhe restam três opções: aceitar numa boa esse cinquentinha aí pra cerveja do final de semana e livrar a minha cara, fazer que não viu e não sabe de nada e sair de fininho no preju, ou terminar de preencher a bosta dessa multa por estacionamento em vaga de aleijado e se arrepender depois pelo resto da vida. A escolha é sua e eu não tenho mais tempo a perder.


Pelo meio da noite, na Câmara, logo após a hora do jantar, dois vereadores que deveriam estar em sessão colocam-se frente a frente a uma mesa de canto na cantina daquela casa do povo e olham-se fixamente em silêncio absoluto. Observando-os atentamente percebe-se que suas fisionomias mudam, de forma quase imperceptível, assumindo expressões de surpresa, desgosto, alegria, contrariedade, entusiasmo, concordância e juras solenes e profundas:


A fim de evitarem aborrecimentos com esses bagulhos eletrônicos que tudo ouvem e tudo veem e tudo leem e tudo registram, comunicam-se por telepatia quando precisam tratar de assuntos impublicáveis ligados a poder e dinheiro.

*Conto publicado no jornal "Diário Catarinense" de 15.06.11

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