Por Amilcar
Neves*
Não é que eu cante para poder escrever, ou para melhor
escrever, nada disso. Mesmo porque, se dependesse dos meus dotes desenvolvidos
nas aulas de Canto Orfeônico, no ginásio, eu jamais conseguiria enfileirar três
palavras que fizessem algum nexo, que tivessem alguma lógica, que construíssem
algum sentido.
Não é, também, que o meu texto seja assim melhor do que a minha desafinação
orfeônica. A qual é crônica e incurável. Daí, talvez, o meu apreço incurável
pela crônica em geral. Mas, confesso, o que prefiro mesmo é ler a crônica dos
outros, escrita por escritores de verdade. Ainda mais porque, reconfesso, essas
que eu faço leio-as exaustivamente até dá-las por findas. Ou até dar-me a mim
por exausto, o que ocorrer primeiro. Depois não mais ponho os olhos sobre elas,
a menos quando um ou outro leitor - e isto é raríssimo acontecer - resolve me
confortar (a troco de nada, nada tenho para dar de troco além de palavras)
dizendo que gostou demais dessa ou daquela crônica, o que me força a ir atrás
dela, meio desconfiado, para tentar descobrir o que poderia tê-lo ou tê-la
seduzido. Nesses casos ímpares, leio uma crônica impressa de minha autoria. E
somente em tais casos.
Nada disso, entretanto, me exime de escrevê-las, às crônicas. E, para tarefa de
tamanho esforço, concentração e dedicação, conto com o segredo do meu canto, um
local sossegado, tranquilo e retirado, quando o estabeleci como tal.
Trata-se do meu escritório doméstico na casa térrea que um dia consegui comprar
num loteamento rural que foi a chácara dos padres do Colégio Catarinense e que
ficou emperrado por uns tempos, questão de dois ou três anos, por conta de
entraves burocráticos associados ao desenho das ruas que não casava com o
limite dos lotes.
Mas aí eu já estava instalado e tudo, com um amplo janelão à minha frente
dando-me a visão dos campos em volta, o odor das vacas pastando e o eco das
assombrações que, diziam os nativos do lugar, por ali abundavam. Eis o local
aprazível, ideal para trabalhar, cogitei eu lá comigo: o meu canto para
escrever!
Isso foi já faz um tempo. É claro que, se eu cheguei aqui, muitos também
lograram semelhante façanha. E a fazendola foi-se povoando à custa da expulsão
gradativa dos lobisomens, bruxas e boitatás, com casas (por enquanto apenas
casas) por todos os lados. Mas eu persisti, mantive a minha trincheira, o meu
canto de guerra (pois escrever é uma batalha sem fim).
Hoje, tenho os feriados e finais de semana como períodos mais propícios à
atividade. O janelão da frente muitas vezes precisa ser fechado porque as
pessoas que passam pela calçada são loucas para conversar com quem está sem
fazer nada (pois escrever é fazer nada). Mas então, nos feriados e finais de
semana, os vizinhos resolvem cortar a grama com máquinas barulhentas ou varrer
as calçadas, limpar os muros e polir os portões de aço com potentes máquinas de
pressão de água. Ao terminar a minuciosa tarefa semanal, por três minutos e
meio a paz desce à terra e inunda de felicidade o coração dos homens de boa
vontade. Três minutos e meio é o tempo que um cidadão leva para ir ao banheiro,
beber um copo d'água e trazer para a rua o carro da família. Ato contínuo,
começa a lavá-lo. Com sua potente máquina. Bem na cara do meu janelão.
Não é brincadeira não, mas sabem onde melhor consigo escrever nos dias de hoje?
Com mais calma, tranquilidade e paz de espírito? Nas arquibancadas da
Ressacada, enquanto o jogo não começa. Palavra de honra.
*Crônica publicada no jornal "Diário
Catarinense" de 31.08.11
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