Por
Amilcar Neves*
Circunstâncias da vida - e, de
certo modo, também da morte, já que se viu subitamente nomeado inventariante
judicial de determinado espólio familiar - levaram Manoel Osório a passar
enorme parte de cada dia da semana que findou em perambulações, contatos, conversas,
aquisições e apresentações de documentos por diversos locais, instituições,
escritórios e entidades situados no Centro da Capital. Como se mergulhasse à
noite no escuro e fosse tateando à procura dos cacos de uma história que, ao
final, fizesse algum sentido. Descobrir o que foi mantido oculto e montar
pacientemente um enorme quebra-cabeça passaram a ser tarefas suas; nada,
portanto, que se possa empreender na velocidade alucinante dos chips: é
preciso avançar com calma e moderação, e, em tempo hábil, digerir informações,
dados, nomes e datas, conjugar elementos aparentemente incompatíveis e até
antagônicos. Inventariar é desvelar segredos, revelar interesses, compor
direitos, avaliar intenções. Inventariar, considera Manoel Osório entre um
endereço e outro da sua peregrinação, é função que deveria ser atribuída
exclusivamente a detetives profissionais. Inventariar não é tarefa para
amadores.
Especialmente no caso desse
tio-avô Estevão Osório, com interesses comerciais em Morro Grande e Praia Grande,
interesses afetivos em Pedras Grandes e Grão Pará, interesses financeiros em
Timbé do Sul, Braço do Norte e Cocal do Sul, interesses sentimentais em Santa
Rosa de Lima e Santa Rosa do Sul, interesses religiosos (Manoel Osório
descobriu - o que poucos sabiam - que o finado parente era dono de Igrejas
neoevangélicas) em São Ludgero, São Martinho e São João do Sul, interesses
inconfessáveis em Sombrio, Ermo, Turvo e Morro da Fumaça, e, acima de tudo,
interesses polpudos na Capital do Estado. Houve, certa feita, descobriu atônito
o sobrinho-neto, uma fugaz tia-avó riquíssima, de nome Diamantina Osória,
ligada a esse seu Estevão Osório, que chegou a fazer um aborto na juventude
antes de se casarem, bodas que aparentemente nunca aconteceram. Assim, por ser
o único dos Osórios a não retornar para a Região Sul e teimar em sua
permanência na Ilha de Santa Catarina, Manoel Osório foi unanimemente aclamado
inventariante do vasto espólio deixado pelo ancião e, como tal, nomeado pelo
juiz de Direito.
A fim de evitar problemas com o
estacionamento do carro decorrentes das longas jornadas diárias a que se viu
submetido na cidade, especialmente o irritante e dispendioso barulhinho de
taxímetro das garagens a martelar-lhe incessante nos bolsos, Manoel Osório
adotou o ônibus como meio de transporte entre sua casa e o Centro. Foi quando
descobriu haver, ao longo do trajeto cotidiano, gentes e paisagens, conversas e
cenários, edificações antigas e praças verdejantes que ele não conseguia
perceber quando se encontrava ao volante. Havia vagares e lugares, conversas e
dramas, deslumbramentos e detalhes de que não chegara jamais a suspeitar. Sem
carro, a vida lhe pareceu subitamente rica e instigante: havia muito a ver,
escutar, cheirar, provar e tocar. Agradeceu de coração ao tio Estevão Osório,
velho sábio e perspicaz.
Ocorreu-lhe então, imprevista e
inconveniente, uma fala absurda e descabida, desprovida de qualquer sentido
lógico ou prático: "Não é boa coisa escrever a derradeira crônica".
Sentiu que lhe cabia o destino irresgatável de encerrar todo um Contexto.
- Até qualquer dia - falou ao
acaso Manoel Osório, os olhos perdidos no mar sereno da Baía Norte como se ela
fora um lago plácido cercado de montanhas por todos os lados.
*Crônica publicada no jornal "Diário
Catarinense" de 11.06.14
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