quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Das delícias de ir ao Centro sem carro

Por Amilcar Neves*
                                    
 
Circunstâncias da vida - e, de certo modo, também da morte, já que se viu subitamente nomeado inventariante judicial de determinado espólio familiar - levaram Manoel Osório a passar enorme parte de cada dia da semana que findou em perambulações, contatos, conversas, aquisições e apresentações de documentos por diversos locais, instituições, escritórios e entidades situados no Centro da Capital. Como se mergulhasse à noite no escuro e fosse tateando à procura dos cacos de uma história que, ao final, fizesse algum sentido. Descobrir o que foi mantido oculto e montar pacientemente um enorme quebra-cabeça passaram a ser tarefas suas; nada, portanto, que se possa empreender na velocidade alucinante dos chips: é preciso avançar com calma e moderação, e, em tempo hábil, digerir informações, dados, nomes e datas, conjugar elementos aparentemente incompatíveis e até antagônicos. Inventariar é desvelar segredos, revelar interesses, compor direitos, avaliar intenções. Inventariar, considera Manoel Osório entre um endereço e outro da sua peregrinação, é função que deveria ser atribuída exclusivamente a detetives profissionais. Inventariar não é tarefa para amadores.
 
Especialmente no caso desse tio-avô Estevão Osório, com interesses comerciais em Morro Grande e Praia Grande, interesses afetivos em Pedras Grandes e Grão Pará, interesses financeiros em Timbé do Sul, Braço do Norte e Cocal do Sul, interesses sentimentais em Santa Rosa de Lima e Santa Rosa do Sul, interesses religiosos (Manoel Osório descobriu - o que poucos sabiam - que o finado parente era dono de Igrejas neoevangélicas) em São Ludgero, São Martinho e São João do Sul, interesses inconfessáveis em Sombrio, Ermo, Turvo e Morro da Fumaça, e, acima de tudo, interesses polpudos na Capital do Estado. Houve, certa feita, descobriu atônito o sobrinho-neto, uma fugaz tia-avó riquíssima, de nome Diamantina Osória, ligada a esse seu Estevão Osório, que chegou a fazer um aborto na juventude antes de se casarem, bodas que aparentemente nunca aconteceram. Assim, por ser o único dos Osórios a não retornar para a Região Sul e teimar em sua permanência na Ilha de Santa Catarina, Manoel Osório foi unanimemente aclamado inventariante do vasto espólio deixado pelo ancião e, como tal, nomeado pelo juiz de Direito.
 
A fim de evitar problemas com o estacionamento do carro decorrentes das longas jornadas diárias a que se viu submetido na cidade, especialmente o irritante e dispendioso barulhinho de taxímetro das garagens a martelar-lhe incessante nos bolsos, Manoel Osório adotou o ônibus como meio de transporte entre sua casa e o Centro. Foi quando descobriu haver, ao longo do trajeto cotidiano, gentes e paisagens, conversas e cenários, edificações antigas e praças verdejantes que ele não conseguia perceber quando se encontrava ao volante. Havia vagares e lugares, conversas e dramas, deslumbramentos e detalhes de que não chegara jamais a suspeitar. Sem carro, a vida lhe pareceu subitamente rica e instigante: havia muito a ver, escutar, cheirar, provar e tocar. Agradeceu de coração ao tio Estevão Osório, velho sábio e perspicaz.
 
Ocorreu-lhe então, imprevista e inconveniente, uma fala absurda e descabida, desprovida de qualquer sentido lógico ou prático: "Não é boa coisa escrever a derradeira crônica". Sentiu que lhe cabia o destino irresgatável de encerrar todo um Contexto.
 
- Até qualquer dia - falou ao acaso Manoel Osório, os olhos perdidos no mar sereno da Baía Norte como se ela fora um lago plácido cercado de montanhas por todos os lados. 

*Crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 11.06.14

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