Por Amilcar
Neves*
Por algum motivo
(sempre nebuloso), chegaram à conclusão de que era urgente convocar uma
audiência pública das aves. Engenheiros disseram que havia n + 1 motivos
para essa convocação, peritos foram ouvidos, estrategistas foram consultados,
videntes foram sondadas, marqueteiros foram inquiridos e a conclusão foi
unânime (já que todos estavam do mesmo lado): audiência já!
Antes que algum
espírito malévolo aí desse lado do jornal (ou aí desse lado da tela do smart, do tablet ou do note) destile o veneno
habitual da intriga e da maledicência, desde agora manifesto solenemente que
este texto nada tem a ver (e seriam assaz insolentes tanto texto como autor
caso pretendessem ter) com a Assembleia das Aves, obra
poético-satírica composta por Marcelino Antônio Dutra, um açoriano-madeirense
nascido na vila do Ribeirão da Ilha em 1809 (morreu velhinho na mesma Desterro,
que o viu nascer, no distante ano de 1869). Um dos talentos desse professor,
promotor público, poeta, jornalista, polemista, administrador do primeiro
cemitério público da Ilha e vibrante político, que chegou à deputação e à
Presidência da Assembleia Provincial, era o de compor epitáfios. Uma dessas suas
peculiares composições literárias mais marcantes diz o seguinte: Aqui
jaz / Marcelino Antônio Dutra / Que mil e poucos registrou / E que, no final /
Também entrou. Acertou na previsão de que um dia morreria, mas não no
vaticínio de que seria enterrado com vista para a futura cabeceira ilhoa da
Ponte Hercílio Luz: entregaram seus restos às terras do Ribeirão, seu torrão
natal.
Aves são bichos
diversos e sua diversidade (assim como qualquer diversidade) tem de ser aceita
e, mais ainda, respeitada. Avestruzes e colibris, por exemplo, são igualmente
aves, a despeito de porte ou comportamento. Ao tomar conhecimento da convocação
(ou convite) para a audiência, o avestruz enfiou a cabeça no primeiro buraco
que encontrou (por sorte sua amada esposa encontrava-se fora) e ali ficou, à
espera de que tudo passasse e a reunião enfim findasse. Já o beija-flor deu de
enfiar bico e língua, longos, até onde não era chamado.
Dada a
multiplicidade de espécies, famílias, gêneros e coisas do tipo, o que levava a
um tumulto sem fim sempre que se inciava uma discussão (invariavelmente
pavorosa e inconclusiva) sobre qualquer assunto, a audiência pública proposta
e, de imediato, convocada, visava auscultar a população de penas para saber de
suas ideias e preferências a respeito da melhor maneira de voar,
consubstanciada no Sistema Ornitológico de Voo, bem como sobre o caminho
supostamente ideal para alcançar-se tal intento, expresso nas inúmeras páginas
do Plano Ornitológico de Voo, de cujo documento (um documento indiscutivelmente
maior) brotariam as metas a fim de que, ao fim e ao cabo, todas as aves, até as
galinhas, pudessem alçar voos altaneiros e artísticos, pejados de imenso
simbolismo alado.
Foi quando, para
surpresa geral, a ave que presidia a memorável sessão (não cá declinaremos seu
nome a fim de evitar especulações maldosas), um pássaro de penugens
esvoaçantes, o que lhe dava suposta autoridade sobre os demais (além de ele
voar, suas penugens também esvoaçavam), agradeceu os relatos de todos os que se
manifestaram e deu por encerrada a sessão. Aos protestos que se seguiram dada a
brevidade dos trabalhos, argumentou que aquilo era mera audiência, de ouvir, o
que o isentava de dar satisfações ou maiores explicações, ou seja, de
simplesmente falar e dizer.
*Crônica publicada no jornal "Diário
Catarinense" de 28.05.14
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