quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Nossos Políticos São Mais Criativos que o dos Outros


Por Alex Constantino


Enquanto mais uma suspeita de corrupção ronda os noticiários sobre política, o principal envolvido, o Ministro do Esporte, Orlando Silva, recentemente afirmou: "eu tenho a serenidade dos justos”.

Parece que, prevendo a iminente degola, já soltou uma frase com um tom bem apropriado de epitáfio.

E essa é só mais pérola que será incluída na próxima versão do grande livro de manobras semânticas de nossos políticos. É tradição em nosso país ter tantos destes gênios da prosa do engodo (ou do malfeito, se formos seguir sua cartilha), que se poderia criar uma nova Academia Brasileira de Letras (com Cifras) para imortalizar esses baluartes nacionais.

E teríamos candidatos de peso. O deputado João Alves, um dos anões do orçamento, certamente já teria sua cadeira garantida. Na época em que foi descoberto que ele usava prêmios da loteria para lavar dinheiro, questionado sobre seu rápido enriquecimento, mandou essa: "Deus me ajudou e eu acertei duzentas vezes na loteria".

Caramba! Deus não só ajudou como estava envolvido no esquema.

E esse talento vem de longe. Não poderíamos deixar de citar a lendária campanha de Adhemar de Barros em que o suposto slogan era: rouba mas faz! E isso porque essa expressão teria sido cunhada como referência a Mem de Sá, governador-geral do Brasil colonial de 1558-1572, certamente, o patrono da Academia.

Adaptando aquele velho slogan de uma marca de aparelhos eletrônicos: nossos políticos são mais criativos que o dos outros.


quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Entrevista com Lourenço Mutarelli - 2ª Parte

Por Fabio Ramos

Foto: Renato Parada

Na continuação da entrevista exclusiva concedida por Lourenço Mutarelli ao Texto de Garagem (a primeira parte pode ser conferida aqui), o autor nos conta sobre a viagem para Nova York, o retorno aos quadrinhos e ainda rememora o início de carreira. Confira o bate-papo a seguir.


Texto de Garagem - Você também contracenou na peça Música para Ninar Dinossauro, do Mário Bortolotto. Como foi a experiência?

Lourenço Mutarelli - Puxa, isso foi muito difícil... Atuar, né? Porque no cinema, por mais que digam que você se expõe, na verdade, você não se expõe. Você trabalha com uma equipe que é relativamente pequena e todo mundo está ali trabalhando com você e, muitas vezes, por você. Pelo ator. Então você fica muito protegido. Você tem uma exposição quando o filme é lançado. Mas, durante o processo, você está muito mais protegido do que no teatro. Eu tenho problema de memória e aí era muito tenso, muito medo de esquecer o texto. Entrar ao vivo numa plateia, cada dia diferente, foi tenso. Era uma tensão que, pra mim, não era boa e que eu não vivo em nenhum dos meus outros trabalhos... Eu não vivia essa tensão nem atuando no cinema. Isso era difícil. A sorte é que o Bortolotto pediu que a gente ficasse à vontade, se divertisse lá e aí eu tentava isso. Mas não era nada fácil. É bem puxado.

TG - Exercitando seu lado dramaturgo, você participou do projeto Teatro para Alguém na internet. Como foi, além de escrever, contracenar com José Mojica Marins durante as filmagens?

LM - Foi demais. A ideia era uma brincadeira em cima de séries e novelas. Eram episódios bem curtos e eu tinha toda a liberdade para bolar a série. É ótimo trabalhar com a Renata Jesion. Ela e o (Nelson) Kao são os donos da casa que é o Teatro para Alguém. É muito bom trabalhar com eles. A Renata escolheu o elenco e me convidou para fazer uma participação. Quando disse que faria, aí vi que (o elenco) era o Mojica, o Peréio, o próprio Bortolotto... Tem uns atores ali que eu adoro: o Zemanuel Piñero, a Gilda (Nomacce), o Niltinho (Bicudo). Muita gente boa. Então era ótimo, era bem divertido.

TG - Você escreveu certa vez que mora em São Paulo, mas vive em sua casa. Para alguém que parece avesso às grandes cidades, como foi passar um tempo em Nova York?

LM - Eu ainda não digeri o que foi essa experiência. Tenho um livro na cabeça que não tem nada a ver com o do (projeto) Amores Expressos. É sobre um assunto que explorei bastante no blog. Nunca tinha tido um blog e, no fim, aquele espaço foi muito bom para minha sobrevivência ali. Mas Nova York não é diferente de São Paulo. Achei mais seguro do que aqui, apesar de ter ficado num bairro bem barra pesada. Os taxistas não me levavam até minha casa. Eles paravam antes e falavam: “Eu vou até aqui”. Mas não tive nenhum problema por lá.
É uma cidade muito mais organizada, mesmo na geografia dela... Você anda a pé e é difícil se perder. Um homem das ruas já é um mapa. Você sempre sabe onde está. Então, nesse ponto, foi tranquilo. São Paulo é mais caótico. O metrô, por exemplo, não tinha um décimo da quantidade de pessoas que a gente pega no metrô daqui. Eu uso muito o metrô aqui também. Mas foi uma experiência que ainda estou tentando entender. Voltei pra lá um ano depois e passei mais uns 10 dias. (Dessa vez) fiquei em Manhattan e foi um pouco melhor. Mas não sei... Também não é uma cidade que me agrade. Nunca quis ir pra lá. Queria ter ido para uma cidade no Alentejo, só que não era a gente que escolhia. Acho que eu era o único que não conhecia Nova York e eles queriam que tivesse esse olhar estrangeiro. Então, foi a cidade que escolheram para mim. Nesse ponto de cidade grande, é muito tranquilo, prático, fácil se locomover. Eu fazia muita coisa a pé. São Paulo é maior, mais caótico.

TG - Foi noticiado que o livro (do projeto Amores Expressos) sairia ainda esse ano...

LM - Ele está previsto para o ano que vem. Era pra (sair) esse ano. Mas como estou lançando um novo no próximo mês, eles acharam melhor deixar para o ano que vem. Eu tinha terminado ele, que foi pra lá (Companhia) e teve uma série de críticas. Eu mexi no trabalho e aí ficou mais ou menos tudo bem. Mas, como a gente tinha tempo, senti que eles ainda iam mexer nisso. Quando voltei a ler o segundo tratamento, eu não gostei. Então, estou pensando em começar do zero e reescrever o livro. (Com) uma outra história, inclusive... Mudar tudo mesmo.

TG - Depois de cinco anos, você retorna às histórias em quadrinhos com Quando meu pai se encontrou com o ET, fazia um dia quente e uma compilação das aventuras do detetive Diomedes. É uma retomada temporária aos quadrinhos?

LM - É uma retomada que não é por minha conta. Foi uma proposta muito boa que fizeram. Só que, ao invés de quadrinhos, eu negociei para que fosse uma história ilustrada. Então é só um desenho por página. Quero fazer quadrinhos, mas uma coisa mais experimental do que eu fazia e venho feito... Estou fazendo uns testes. Em algum momento, talvez eu faça um quadrinho como eu gostaria de fazer. Mas voltei por isso. E eles devem lançar as quatro histórias do Diomedes, em um único volume, também no ano que vem.

TG - Recentemente, você ilustrou a capa do livro “a máquina de fazer espanhóis”, do valter hugo mãe. Como surgiu o convite?

LM - A Cosac (Naify) me convidou e fiquei um ano... Todo esse tempo que trabalhei na história do ET, eu não fiz palestra, oficina e nem peguei freelance porque me tomava muito tempo. Aí eu resolvi pegar, voltar a trabalhar com algumas coisas e gostei. Gostei do convite. Achei o livro interessante e foi isso. Foi um trabalho como ilustrador.

TG - Você continua estudando tarô?

LM - Não, eu parei. Tive que me afastar da referência que o tarô teve sobre o meu trabalho. Ele tem uma estrutura muito boa pra você, partindo dali, construir qualquer história. Mas, para não repetir algumas estruturas que eu vinha experimentando, resolvi me afastar um pouco. E conforme o tempo passa, vou esquecendo muita coisa. Tenho um bom banco de dados, tenho muitos estudos e várias coisas guardadas sobre o assunto, mas não estava... (Isso) não tem me atraído mais e também quis me afastar um pouco.

TG - Quais são os autores que você não suporta?

LM - Não suporto? Puxa vida... Uma vez me queimei com uma pergunta dessas. Era sobre quadrinhos. Eu respondi que gostava de todo mundo. Mas ficaram insistindo... Aí falei de um cara que ficou muito ofendido. Acho que até parou de fazer quadrinhos. Nunca mais vi trabalho dele. Mas não era com essa intenção... Autor que eu não suporte? Geralmente os caras que não me atraem, eu nem leio. Tem autores que eu cansei. Tem alguns que já li e depois cansei. Mas existem alguns livros desses autores que eu gosto.

TG - Eram livros que, de repente, faziam sentido na época em que você leu e hoje não mais...

LM - É... Quando gosto de um autor, eu tento acompanhar o máximo possível da obra. Às vezes o cara tem um ou dois livros legais, mas têm outros que são ruins mesmo. Ou então que não tem a ver. Isso é muito pessoal. Não estou querendo fugir da pergunta, mas não lembro de ninguém que eu não suporte. Tem pessoas que nunca li e tenho preconceito. E provavelmente nunca vou ler por isso, porque tenho preconceito.
Livro também é isso: você tem que entrar nele. Não é como uma música, que você vai ouvir mesmo não querendo. Tem muita coisa que eu não li, tem muita coisa que eu nunca vou ler. Mas não tem nenhum assim que... Porque é aquilo: os que não me atraem, eu nem vou atrás.

TG - É possível viver de arte num país como o nosso?

LM - É muito difícil. Você começa a envelhecer e vai ficando cansado. Vai tendo menos disposição. Então, é muito difícil. É sempre uma luta. É cansativo. Não tem um momento que você diga: estou tranquilo, legal, vou me aposentar... Não tem, não tem. É preciso fazer de tudo. Tem que trabalhar mesmo e torcer que apareça alguma coisa pra você ir tocando.

TG - Para um jovem autor, vale mais publicar o trabalho na internet ou buscar o caminho impresso (mesmo que seja de maneira independente)? Insistir na procura por uma editora ainda é apropriado nos dias de hoje?

LM - Eu acho que tem que procurar editora pequena. O ideal é tentar se autoeditar. Isso é o ideal. Esse é o melhor caminho, porque dificilmente uma editora investe em um cara novo. E geralmente, quando investe, esse cara já fez pelo menos um livro independente... Ou mesmo na internet, né? Tem um pessoal que começou a colocar texto em blog e acabou sendo publicado até por editoras grandes. Acho que o caminho é produzir, mostrar para os amigos e ir seguindo. Uma hora aparece (uma chance).

TG - Como é a sua relação com a internet?

LM - Internet? É bem devagar.

TG - Você teve um blog, não é mesmo?

LM - Eu tive. No ano passado, ou no ano retrasado, eu tinha um blog. Voltei a ter um blog. Era pra dividir algumas coisas que eu não divido e também para reencontrar as pessoas que frequentavam o meu blog de Nova York. Só que acabaram usando coisas do blog em entrevista e isso me incomodou muito. Eu deletei tudo. Achei que era uma coisa mais fechada, assim, que só as pessoas que estavam lá entrariam...

TG - Mas o que você escreveu foi tirado do contexto?

LM - Foi. Botaram como se eu tivesse dito para uma jornalista algumas coisas que estavam no blog. Nunca imaginei que aquilo ia parar em um jornal, por exemplo. E não falei isso para jornalista nenhuma. Fui muito ingênuo de postar coisas que não eram para qualquer pessoa. Mas acho a internet boa para comprar. Outro dia eu precisava de um livro e, em três horas, ele chegou aqui em casa. É muito prático pra esse tipo de coisa. De resto, é cansativo. Mesmo e-mail eu acho muito chato. É a minha mulher que cuida disso. Não tenho paciência mesmo.

TG - Como foi conquistar o terceiro lugar no prêmio Portugal Telecom com o livro A Arte de Produzir Efeito sem Causa?

LM - Ah, foi surpreendente. Só de estar entre os cinquenta, eu já achei demais. Depois ficou entre os dez e conquistou o terceiro lugar. Foi muito corajoso da parte do júri. Já fui júri de um PAC de quadrinhos e já ganhei outros prêmios. Mas é isso: não dá pra você premiar o melhor. Prêmio também é uma coisa pessoal. Foi muito bom estar entre os três. Foi bom pra vida do livro, porque ele tinha sido muito atacado pela crítica e isso pesou nas vendas e tudo. Foi bom pra mim e é um livro que eu tenho muito carinho, que eu gosto. Foi legal, mas não acho que é o terceiro melhor livro dos quinhentos que concorreram ali. Não tenho essa ilusão e nem essa pretensão, mas fico feliz. Da minha parte, foi algo bastante inesperado. Eu não tinha expectativa nenhuma.

TG - Ter cursado a Faculdade de Belas Artes contribuiu com o seu trabalho?

LM - Muito, contribuiu muito. Principalmente por alguns professores que tive. Eu frequentava a casa do Pedro Lopes, que foi muito importante pra mim. O (jornal) Estado promoveu um reencontro nosso há uns dois ou três anos atrás. Aprendi muito com ele. É um cara que abriu a minha cabeça. Foi importante não só pro meu trabalho, (mas) pra minha existência, pra minha percepção.

TG - Eu li que você também fez fanzine no início de carreira. Você chegou a fazer fanzine mimeografado?

LM – Não. O Marcatti imprimia até capa colorida numa offset que é impossível imprimir quatro cores. Já conhecia o trabalho dele, mas não o conhecia pessoalmente. E tinha um cara que trabalhava comigo lá no Maurício (de Souza) que tinha o telefone do Marcatti. Aí eu tentei ir por ali. Fiz algumas coisas em mimeógrafos quando era muito novo. Era coisa de escola, de fazer jornalzinho e reproduzir uns desenhos. Cheguei a fazer uns mais de sacanagem com um cara que tinha um mimeógrafo em casa, mas não foram os meus fanzines. O primeiro de todos já foi numa offset caseira, pequena.

TG - Na época em que trabalhou com o Maurício de Souza, o que você fazia exatamente?

LM - Trabalhei na parte de cinema no Maurício, não em quadrinhos. Entrei como intercalador, fazendo o desenho intermediário na animação. Depois fui cenarista. Eu pintava os layouts de cenário pros filmes. Eu precisava trabalhar e estava na faculdade. Um amigo foi procurar serviço lá, resolvi ir junto e consegui. Era um emprego. Nunca fui muito ligado nesse universo, mas tinha um lado bacana que era trabalhar com material bom. Eu nunca tinha trabalhado com material bom mesmo. E o Maurício só usava o que tinha de melhor. Ele tinha uma gibiteca para os funcionários também, onde conheci muitas coisas. E o lance de ter que trabalhar, né? Embora eu desse uns “chapéu” por lá, você tinha que produzir, trabalhar e se disciplinar. Então isso foi muito bom.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Entrevista com Lourenço Mutarelli

Por Fabio Ramos

Foto: Renato Parada

Antes, quadrinista das HQs “Transubstanciação” e “A Confluência da Forquilha”. Hoje, autor de livros como “O Cheiro do Ralo” e “O Natimorto” (ambos adaptados para o cinema), ator e dramaturgo. Mas, afinal, quem é Lourenço Mutarelli?

Nesta entrevista exclusiva ao Texto de Garagem (concedida na cozinha de seu apartamento, em São Paulo, sob os olhares curiosos dos gatos), ele nos conta sobre o processo criativo, a transição dos quadrinhos para a literatura e muito mais. Acompanhe a conversa logo abaixo.


Texto de Garagem - Todo autor é um ser solitário?

Lourenço Mutarelli - Acho que escrever é um ato solitário. Escrever é um ato que você tem que estar sozinho, bem sozinho mesmo, desligado de muita coisa. Eu estou num processo de voltar a escrever agora e hoje não foi muito porque, justamente, não consegui me isolar o suficiente. Não acho que a existência seja solitária, embora toda existência seja muito solitária de alguma forma, né?

TG - Muito se fala do caráter autobiográfico de sua obra. Até que ponto isso é verdade?

LM - Eu uso muito as experiências que vivi. Às vezes, algumas experiências que estão lá são verdadeiras e, às vezes, elas estão disfarçadas ou transformadas. E tem muito de ficção também. Muito que surge ali. É uma parte importante, mas que deve ser 40% da minha obra. Tem coisas que são mais autobiográficas e tem coisas que são baseadas em alguma vivência. Uma vez falei numa entrevista que eu uso muito um repertório de emoções, de coisas que vivenciei. Mesmo que não estejam descritas como foram, mas elas têm uma carga emotiva, de coisas que eu vivi. Isso é mais característico.

TG - E tem alguns pontos que a gente até identifica. Talvez seja o caso de O Natimorto, do cara que fuma bastante. Ou mesmo do Miguel e os Demônios, cujo personagem é um policial... Eu li que seu pai e seu irmão também trabalharam na polícia, né?

LM - É... Mas o Miguel e os Demônios foi uma encomenda. Eles me deram um argumento que era esse: a história de um policial que se apaixona por um travesti. Eu sempre parto disso, da minha bagagem emocional, a que isso me remete. E minha avó materna trabalhou na parte burocrática da polícia, meu pai era delegado, meu irmão era investigador. Então, todas as histórias policiais que aparecem no livro foram contadas por eles. Todas têm uma base real. E na parte do travesti, a primeira coisa que lembrei foi do tarô. O diabo é um travesti na iconografia de Marselha. Não só lá, mas onde mais me baseio. E aí eu comecei a pegar histórias... Estudei demonologia uma época e tinha umas histórias interessantes ali, que são ditas como verdadeiras.  Misturei também esse outro repertório, que não vem de uma bagagem 100% autobiográfica, mas vem do cruzamento de vivências e coisas que eu tinha lido ou pesquisado. 
No caso de O Natimorto, o cara fuma muito, como eu fumo, mas eu não me identificava em nada com o personagem até ele ser adaptado pro teatro pelo (Mário) Bortolotto. O ator que fazia, o Nilton Bicudo, é muito parecido comigo. A partir daí, comecei a me enxergar um pouco nesse personagem. Mas é isso: tem alguma coisa, mas não é autobiográfico. O último álbum em quadrinhos que publiquei, o A Caixa de Areia, é uma falsa autobiografia. Eu uso a minha casa, a minha mulher, o meu filho, eu e alguns dos gatos, mas a história não é verdadeira. Eu misturo o ficcional com alguns elementos verdadeiros.

TG - Durante uma entrevista, você comentou que “Lourenço Mutarelli é um equívoco”. O que você quis dizer com isso?

LM - Esse é um problema sério da internet. Muita coisa que você fala fica lá. E às vezes filmado: tem você falando e são coisas que nem sei por que falei, ou não concordo, ou é alguma coisa de momento... Acho que tem um equívoco de pensar, por exemplo, que eu sou um sucesso. Algo nesse sentido, porque as coisas que almejo, ou que são um sucesso para mim, não têm nada a ver com o lado profissional e eu estou muito longe de alcançar. Talvez tenha sido nesse contexto que eu declarei isso. Da minha parte, honestamente, não lembro porque falei.

TG - Em uma postagem antiga de seu blog, você comenta que há sempre um processo em sua cabeça. Como funciona o seu processo criativo?

LM - Todas as minhas histórias partem de alguma coisa muito pequena, de alguma fagulha que eu sinta que possa incendiar. Parto de pequenas ideias que eu guardo e que ficam na minha cabeça. Até chegar o momento de trabalhar com elas, para ver onde isso vai dar. A parte mais importante do meu processo, que é algo que comecei a fazer em 2007, são os sketchbooks. São cadernos que eu chamo de A Vida com Efeito. Geralmente estou meio bêbado, alguma coisa assim, e vou rabiscando, escrevendo coisas sem sentido. De vez em quando eu folheio (o material) e vem muita ideia dali. Isso é um processo importante para a minha criação nesses últimos tempos. Eu tento me disciplinar, trabalhar todo dia, mesmo que no dia seguinte eu jogue fora algo que fiz. Ou tudo... O problema é que às vezes estou envolvido em muitas coisas diferentes e isso me desconcentra. O Marçal Aquino fala que, conforme vai escrevendo, é como se a história estivesse sendo contada pra ele. Eu gosto muito de pegar um pequeno argumento que tenho, às vezes algo que nem chega a ser um argumento, mas um ponto de partida que eu ache estimulante, e ir seguindo, vendo essa história sendo contada pra mim. Essa é a essência da origem do meu trabalho.

TG - Esse processo difere quando o projeto é um livro ou uma história em quadrinhos, já que são linguagens diferentes?

LM - É muito diferente. Quadrinho exige muito mais pesquisa. Às vezes também me aprofundo em alguns temas, mesmo que não vá usar tudo no livro, mas eu tento. Eu tenho um tempo de pesquisa, de estudo, mas no quadrinho isso é muito maior porque tem a parte da pesquisa imagética. Eu tenho que pesquisar, ambientar a história, ver quem são esses personagens, como eles se vestem. Construir esse universo em imagem é muito trabalhoso. começo a desenhar quando o roteiro do quadrinho está pronto e vou levar de 10 meses a um ano desenhando isso. Eu acabei um livro ilustrado agora que fiquei nesse processo por mais ou menos 10 meses. Os últimos álbuns que trabalhei tinham em média 100 páginas. E na literatura, quando termina o livro, está pronto, já acabou o trabalho... É um processo muito diferente. A única vantagem é que, enquanto estou desenhando, a cabeça fica livre e vem muita ideia que dá pra aproveitar depois.
 
TG - Como se deu a transição dos quadrinhos para a literatura? Foi algo planejado?

LM - Não, foi bem acidental. Eu estava com a ideia de O Cheiro do Ralo e pensei que... Eu tinha acabado de ler algumas coisas que foram muito visuais para mim. Uma delas foi o Capão Pecado, do Ferréz. Fiquei muito impressionado como o texto me levava pra algo muito mais real do que se eu lesse quadrinho ou visse alguma coisa desenhada e tal. Então quis experimentar, causar uma ilusão maior do que através dos quadrinhos. E fiz muito rápido. Em cinco dias fiz O Cheiro do Ralo e foi totalmente acidental. Eu comecei e não consegui parar. Quando parei, a minha mulher estava viajando. Assim que ela voltou, passei pra ela ler. Ela apontou alguns lugares que não estavam muito claros ou muito bem resolvidos. Aí eu trabalhei mais uns 10 dias e ficou pronto. Não pensei que estava fazendo um livro. Eu só fiz o livro sem perceber.

TG - O Ferréz dedica o Capão Pecado a você, não é mesmo?

LM - É... E eu devolvi (a dedicatória), porque foi muito estimulante ler o livro dele. Tenho muita coisa pra ler, mas não tenho tempo. Até fujo um pouco dos contemporâneos, porque tem muita coisa que eu quero ler. E é difícil você pegar algo novo que te atinja mesmo. Mas nesse eu entrei e foi muito bom. Foi muito estimulante ler e me deu muita vontade de escrever. Foi muito em função disso. E aí comecei a misturar e a lembrar de outras coisas que eu tinha lido recentemente. Muitas dessas coisas aparecem no livro e são citadas como se o personagem estivesse lendo ou lido.

TG - Como os seus fãs dos quadrinhos encaram o Lourenço Mutarelli escritor?

LM - São públicos muito diferentes. É um público de quadrinhos e outro de literatura. E são públicos que não transitam muito, né? O meu público cresceu em função de pessoas que viram o filme O Cheiro do Ralo e aí, pela primeira vez, tiveram contato com a minha obra e foram procurar outros livros meus. A maioria do meu material em quadrinhos está esgotada, tem pouca coisa disponível. Mas sei que muitos que liam os quadrinhos nunca leram os livros e tem alguns que comentaram gostar mais dos livros. Eu também prefiro os livros.

TG - O processo de trabalho na Companhia das Letras, sua editora atual, é muito diferente da Devir?

LM - Muito diferente. Muito diferente, porque eu tenho um editor, coisa que eu nunca tinha tido. Ele lê os originais e, às vezes, a gente negocia algumas coisas do livro. Às vezes o livro sai como estava, mas passa por uma revisão, que nem isso eu tinha na Devir. E às vezes rola um processo editorial mesmo, que é mais trabalhoso. Detesto mexer em coisa que eu considere pronta. Isso é muito desgastante pra mim. Sinto que melhora e muito o olhar do editor, assim, a coisa de editar o texto como se fosse um filme, mudar um trecho ou cortar um capítulo antes... Esse tipo de detalhe eu acho bem interessante. Mas mexer na estrutura ou em personagem, isso é muito desgastante. Tive que fazer isso poucas vezes, mas, quando foi feito, são livros que eu travei e vou ter que voltar em algum momento, como o de Nova York, do (projeto) Amores Expressos.

TG - Em dez anos dedicados à literatura, foram seis romances lançados, né?

LM - Eu preciso pensar. A Arte de Produzir Efeito sem Causa, O Natimorto, Jesus Kid...

TG - Miguel e os Demônios, Nada Me Faltará...

LM - E O Cheiro do Ralo, né? São seis livros. Tem mais um, esse aí que eu terminei, mas vou voltar nele. Pra mim já estava pronto, mas acho que vou reescrever... Então, são seis livros.

TG - Essa produção é até extensa, levando em consideração o curto período (de tempo).

LM - Para mim, (essa produção) é até defasada, porque eu sempre trabalho um livro por ano. Sempre, desde que comecei publicar meus álbuns. Era quase um livro por ano. Nesse meio tempo tiveram cinco peças de teatro que escrevi e ainda participei de outros projetos que não são de literatura. Mas gosto de trabalhar pelo menos um livro por ano. Eu acho importante e tenho essa necessidade. Tem pessoas que falam que sou uma fábrica de produzir e tal, mas é o meu ritmo. Acho que cada um tem seu ritmo. Meus livros também são de fôlego curto. (Eles) têm, no máximo, 100 páginas, cento e poucas páginas. É uma característica (minha).

TG - Como você classifica a sua literatura?

LM - Não sei. Acho que também não cabe a mim classificar. Mas é difícil, é difícil... Não sei como classificar. Não sei mesmo.

TG - As suas histórias – e os seus personagens – são sempre permeados por um universo de humor negro. Você enxerga uma influência tragicômica na sua obra?

LM - Ah, eu acho que tem. E tem muito o meu olhar. O meu olhar é muito... Eu tenho um humor negro cotidiano, é uma característica minha sim. Dizem que têm coisas que não se brinca... Sou o tipo de pessoa que brinca com essas coisas. Nunca tive um limite. Claro, quando é o meu trabalho, eu tenho mais bom senso. Agora, com as pessoas que convivo e nas minhas brincadeiras domésticas, não tem essa censura.

TG - Mas, hoje em dia, nós vivemos na época do politicamente correto. Você não pode dizer nada, que todo mundo se ofende...

LM - Isso é ridículo, isso é muito ruim. Eu acho que isso uma hora passa. Não é possível que (isso) fique, né? Mas sei lá.

TG - Além da participação em alguns curtas-metragens, você fez uma ponta no filme baseado em O Cheiro do Ralo e o personagem principal de O Natimorto. Você já tinha atuado antes?

LM - Eu tinha feito um curta-metragem pra USP, que o menino me convidou para ser protagonista. Nunca tinha pensado nisso, mas estava escrevendo minha primeira peça de teatro e, às vezes, os atores reclamavam que nem todo diálogo dava para ser verbalizado e tal. Então achei interessante fazer essa experiência e tentar entender o outro lado. E aí, depois disso, foram aparecendo convites e eu fui fazendo. Mas também acho que é algo que já cansou. Fiz mais duas participações com a Anna Muylaert, fiz outros curtas, atuei numa peça com o Bortolotto. Não ia mais fazer, pra mim já tinha encerrado (o ciclo). Percebi que eu entrei nessa como um policial infiltrado mesmo, um autor querendo vivenciar o outro lado. Como material, como bagagem, foi bem legal. Por mim eu já teria encerrado. Mas, no mês passado, já me envolvi em mais dois filmes de amigos, que me chamaram para uma pequena participação. O Bortolotto disse que está escrevendo uma peça pra gente e talvez eu faça. Mas não é uma coisa que... Não tem mais o prazer que tinha quando comecei a brincadeira.

TG - Você acha que a sua atuação mais intensa foi realmente a do filme baseado em O Natimorto?

LM - Ah, sem dúvida.

TG - Aquela cena das baratas, por exemplo, deve ter sido complicada pra fazer...

LM - Não, foi uma cena muito tranquila. Eu tinha muito medo dessa cena desde que começou o roteiro. E achava aquilo totalmente desnecessário. Mas eu trabalho muito com a concentração, né? Quando estou trabalhando, eu me foco muito. Estou sempre muito concentrado. Então, a cena foi mais tranquila do que imaginava. Continuo não gostando, e tendo aflição de barata, mas a cena foi bem mais tranquila do que eu pensei que seria.

TG - O seu nome tem sido bastante citado, nos últimos anos, por causa das adaptações cinematográficas de seus livros. Não chega a ser curioso que, mesmo com toda essa repercussão, você tenha lançado um livro como o Jesus Kid (que não deixa de ser uma crítica ao cinema)?

LM - O Jesus Kid era uma encomenda do Heitor Dhalia, que é o diretor de O Cheiro do Ralo. Ele me deu o argumento que era a premissa do livro, baseado no Barton Fink e no Adaptation, (sobre) um cara que fica três meses preso num quarto de hotel. Eu aproveitei pra lavar muita roupa suja, muito mal-entendido ali no meio. Foi divertido fazer. E o mais curioso é que o Heitor quis fazer o prefácio e aí ficou mais bizarro ainda... Mas foi divertido pra caramba fazer.

Como o bate-papo rendeu quase uma hora de gravação, o restante da entrevista será publicado na próxima quarta. Não perca!

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Vícios

Por Denise Fernandes


Acho que tenho o vício de responder à palavra “mãe”. Foram tantos anos ouvindo de forma insistente a palavra que às vezes ela surge fantasmagórica, alguém fala “mãe” lá longe e eu penso que é comigo, me dá saudades da Bia, minha filha mais velha ou do Lucas. Será que ser mãe pode ser considerado um vício? Às vezes, sinto que tenho síndrome de abstinência dos meus filhos.

Tenho também o vício de abraçar. Às vezes, abraço gente que nem conheço bem, só para ser simpática. Houve na minha vida um ex-marido meu que reclamava que eu era muito “dada”... porque abraçava muito... Mas é só um vício, não é tanta doação. É a insistência do amor, na forma do vício de abraçar. Certas pessoas ficaram e ficam sempre abraçadas comigo.

Outro vício é tomar café. Tem o açúcar também. E talvez chocolates possam ser considerados um vício à parte. Fui fumante também. E acho muito difícil ficar totalmente sem beber. Vício em ginástica nunca tive, nem consigo me imaginar pegando. Mas nunca se sabe. Porque tendência ao vício, eu tenho.

Claro que já fui viciada em chicletes. E em balas também, tanto de hortelã, como de goma, e mini-balas com vitamina C. 

Uma das coisas boas da vida é ter outras pessoas para compartilhar vícios. E aí começa sempre uma ordem maior de pecados e é por isso que se diz que estamos aqui para nos aperfeiçoarmos espiritualmente.

Se a gente pode ser viciado em certos tipos de comida, também admito vício em coxinha, em pizza e em todo tipo de macarrão. Sou viciada em bolo também.

Talvez eu seja viciada em sexo, mas isso não significa encorajamento de qualquer forma para qualquer leitor ou leitora dessas palavras. O vício muitas vezes não estabelece a compulsividade ou a impulsividade, mas uma certa dependência que leva à transcendência. Tomara Deus seja assim.

Tenho o vício da saudade, o vício de olhar a tarde, desde menina tenho esse vício. A professora falava que não era bom para mim... sentar na janela; aí que eu me esforçava mais para ir bem na escola, me manter na janela, na posição implacável de poder olhar o pátio, vigiar a mangueira, ver as nuvens passando enquanto a professora tremia ausente e eu memorizava cada palavra do que ela falava. Tenho o vício das flores e da saudade das flores.

Já fui viciada em roer unhas e as peles em volta dos dedos. Não sei como, mas já roí a unha do pé. Faz muito tempo e eu não lembro muito bem como foi. Mas lembro que foi mais de uma vez. Aí eu percebi que estava ficando meio absurdo, fora de controle e que tinha que dar um jeito na situação. Se não fosse uma consciência mínima que habita em todos nós, seríamos absolutamente dominados pelos vícios. Pelo menos, eu sou assim. Viciada nos vícios. 

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

A Nova Igualdade



A busca pela igualdade sempre ocupou uma posição proeminente nas principais reivindicações dos movimentos revolucionários. Chegou a se tornar parte do lema da Revolução Francesa e ainda integra o discurso dos mais diversos movimentos sociais.

Em que pesem os avanços sociais que surgiram sob sua égide, principalmente em relação aos direitos humanos, não parece que hoje ela possa servir como força motriz do ideário necessário para êxito nas etapas seguintes.

Pelo menos não com o mesmo sentido que lhe foi emprestado anteriormente. Vista em termos mais absolutos, a igualdade, em si, não representa qualquer benefício, porque, mais preocupada em igualar as condições, tanto faz se isso ocorre nos níveis mais altos ou mais baixos. O importante é que todos estejam na mesma situação, independentemente de qual seja ela.

É por isso que, vista sob um ponto de vista mais pernicioso, justificou a ocorrência de um fenômeno de massificação cultural (que inclui aspectos econômicos, sociais, comerciais, educacionais etc), qualificado pela mesmice e falta de individualidade.

Assim, sua força só pode permanecer se tomada não como igualdade de condições, mas sim como igualdade de oportunidades.

Ela não pode se satisfazer com a luta para que todos tenham direito de alcançar o mesmo destino, mas com o esforço para que todos tenham direito de ter o mesmo ponto de partida. E daí cada um escolhe aonde quer chegar.

É o respeito pela diversidade. Ao contrário do que pode parecer, ela é muito mais igualitária do que a velha ideia de igualdade.


quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Ourives da Palavra

Por Fabio Ramos


Existirá tarefa mais intensa do que exprimir-se através da escrita? Nossos pensamentos abstratos ganham forma. Além disso, é constante o desafio de colocar em palavras o que sentimos. Um bilhete. Uma carta. Um desabafo recebido no correio eletrônico. Com apenas uma frase, implodimos amizades de longa data e amores eternos. Quem dera eu estivesse mentindo.

Já dizia Saint-Exupéry: “A linguagem é uma fonte de mal-entendidos”. Quando transposta para o papel, então, potencializa seu poder de fogo. O espaço em branco deve ser preenchido. Trata-se de uma experiência libertadora. Ao final do processo, talvez compreenderemos melhor a nós mesmos. Ou não. As consequências de tal ato – não raro perturbadoras – poderão, ainda, permanecer esquecidas numa gaveta (virando alimento para cupins e traças).

De onde vem a ânsia de escrever? Eis uma outra questão sem resposta. Garanto a todos que este desejo não partiu de mim. Será? Se isso for uma doença, há muito estou contaminado. Desde os primórdios da humanidade, inúmeros se aventuraram nesse caminho sem volta. As curvas sinuosas da estrada, femininas por excelência, seduzem e enfeitiçam; demandando fidelidade total. Tremendo comprometimento.

Ao redigir, aqui, minhas impressões, aceito o fardo em silêncio. Lapidador vulgar que sou, não passo de um mero ourives da palavra. Estas linhas terão significado para os demais? Serei capaz de me realizar enquanto desbravador do inconsciente? Aonde a persistência me levará? Oh, time will tell...   

domingo, 9 de outubro de 2011

UM (breve conto) - 2ª Parte


Por Camila Santana Romeu
 
O ônibus estava atrasado, porque chovera muito à noite, e algumas ruas estavam alagadas. Os faróis quebrados piscavam ininterruptamente a luz vermelha. Parecia natal, mas ainda era Setembro... E toda aquela agitação parecia não incomodar o pequeno rapaz de olhos semicerrados.

Finalmente apareceu algum ônibus. Entrou, sentou e observou a pessoa ao lado com um celular conectado à Globo. No jornal matinal anunciavam alguns acidentes de carros, assaltos, alagamentos e tiroteios. Nada que o surpreendesse muito. Sentiu vontade de falar com namorada. Ligou para ela. Do outro lado da linha:
- Oi amor!
- Bom dia amor!
- Onde você está? – perguntou a moça.
- Perto da tua casa. Você demora a sair?
                - Não saio já. Quer me esperar no ponto?
Ele demorou uns 10 segundos para responder àquela pergunta, pensando no tempo que ainda teria que ficar esperando por um outro ônibus. Mas já estava atrasado, que diferença faria? E queria tanto ver aquela formosura de mulher.
- Claro! Estou te esperando.
Desceu do ônibus e esperou por ela mais uns 15 minutos: mulheres muito bonitas não precisam mais do que 15 minutos para ficarem lindas! As feias é que gastam uma eternidade tentando esconder as tantas imperfeições...
Pegaram um novo ônibus.
A chuva tinha cessado e um sol tímido brilhava, escondido por algumas nuvens espalhadas pelo céu. Era só mais uma das chuvas de primavera, que caem para mostrar sua graça, mas logo dão espaço novamente ao padrinho do dia.
Sentados, comentavam como estavam com saudade um do outro, como se amavam e todas aquelas juras eternas que namorados fazem, e que tanto machucam quando um sonho acaba, e percebe-se que nada que se dizia eterno, de fato, dura para sempre. Porque nada dura para sempre.
Mas eles se amavam naquele momento, com os olhares fixos um no outro,  como se fosse o primeiro e o último olhar. Falavam dos dias que passaram entre domingo e aquela manhã de quarta-feira, contavam novidades, alegrias e frustrações.
O trânsito ainda estava parado. Já era quase 9 horas! Ele chegaria atrasado mais uma vez. O que importa?
Uma mulher grávida entrou no ônibus, e este fato, fez com que se iniciasse um diálogo sobre o casamento.
Planejavam se casar no próximo ano, e no outro ter o primeiro filho. Gostariam de uma festa grande para todos os amigos. Mas só os amigos, nada de vizinhos mexeriqueiros! O vestido seria desenhado pela mãe da moça, e o terno alugado numa dessas lojas de Trajes à Rigor. A cerimônia seria celebrada por um padre que fizera a 1º Eucaristia da moça, já que ele não tinha lá uma religião a qual seguisse à risca. Nem ela seguia nada à risca! Mas era tão lindo casar na igreja! Nas novelas, as mocinhas sempre se casam com os mocinhos em uma linda cerimônia religiosa e uma grande festa luxuosa...
Ambos ganhavam pouco, mas estavam dispostos a assumir a dívida para, em troca, realizarem o sonho da “Novela das 8”.
- Onde vai ser a festa? – perguntou, entusiasmada.
- Pode ser naquele salão de esquina com a Igreja, o que você acha?
- Muito pequeno. Pode ser naquele na Av. Principal.
- Por mim, tudo bem.

Escutaram um barulho. Um assalto no banco do outro lado da rua.
Foi o último barulho que ele escutara.
...Sonhos destruídos, vida interrompida.

Não chegaria atrasado ao trabalho, nem teria medo de ser demitido.
            Também não haveria mais casamento, nem fins de semana trancafiado no quarto com a namorada linda que tanto amava.

Nunca mais beleza, nunca mais amor...


No dia seguinte, o jornal da Rede Globo anunciava pela manhã:
- Assalto a banco, na manhã anterior, gera tiroteio entre assaltantes e policiais. Quatro pessoas ficaram feridas. Três estão em estado de emergência, e um não resistiu aos ferimentos.


Um... ELE virou UM. Mais um no noticiário, que amanhã será esquecido.
Talvez Rubem Fonseca escrevesse algo sobre ele, mas o rapaz não lia os contos do Fonseca.

                Fiquei sensibilizada...


Para maiores informações sobre Camila Santana Romeu,
acesse o blog pessoal da autora.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Outubro Revolucionário



Outubro marca duas datas importantes ligadas a duas figuras revolucionárias mundialmente conhecidas.

Mohandas Karamchand Gandhi, mais conhecido como Mahatma Gandhi, nasceu em 2 de outubro de 1869 e é considerado o idealizador e fundador do moderno Estado indiano, feito que conseguiu atuando como o maior defensor do Satyagraha (princípio da não-agressão), uma forma de protesto não violenta que foi utilizada como meio de revolução.

Gandhi conseguiu reunir o povo indiano, marcado por profundas diferenças religiosas e sociais, em atos de desobediência civil  em massa em que tinha como programa a igualdade, o não uso de álcool ou drogas, a unidade hindu-mulçumano, a amizade e a igualdade para as mulheres.

Estes cinco pontos representavam os dedos de uma mão e estavam ligados pelo pulso que simbolizava a não violência. Com sua determinação firme se opôs pacificamente contra o domínio inglês conseguindo a independência indiana.

Por sua vez, o dia 9 de outubro é lembrado como a data da morte de Ernesto Rafael Guevara de La Serna, o “Che Guevara”, um dos principais ideólogos e líderes da Revolução Cubana, que se utilizou da luta armada e foi morto tentando estender a guerrilha revolucionária pelo “Terceiro Mundo”, em especial pela América Latina. Posteriormente à sua morte, sua figura se tornou um ícone do movimento contracultural e sua imagem é uma das mais reproduzidas no mundo, notadamente em caráter simbólico, representando determinadas ideologias políticas.

Segundo informações levantadas pela Cuba Archive, uma associação cujo objetivo é levantar dados sobre as violações de direitos humanos em Cuba, Che Guevara, um médico (que portanto havia realizado o juramento de Hipócrates) comandou pessoalmente centenas de fuzilamentos. Além disso, segundo o escritor Paul Berman, ele fundou o sistema cubano de campos de trabalho forçado que foram, posteriormente, utilizados para manter cativos dissidentes, homossexuais e vítimas de Aids.

Vendo a forma como ambos escolheram lutar soa oportuna a coincidência de que num mesmo mês se comemora o nascimento daquele que valorizava a vida e a morte daquele que optou pelo conflito armado. Pena que o segundo estampa mais camisetas do que o primeiro como verdadeiro ícone revolucionário.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Sem Título 1, Sem Título 2 e Dobradura


Por Fabio Ramos


SEM TÍTULO 1

contesta, honesta
aqui ninguém presta
não seja tão modesta

avia, excreta
um gozo no meio da fresta
libido manifesta

mastiga, com pressa 
o patrão vocifera
à sua espera

salário? protesta
fala o que não sente
sente o que não fala

escapa espia escarra aperta
um tiro no meio da testa
a turba, em volta, atesta


SEM TÍTULO 2

a fim de afamar 
o efêmero
faria o que fosse
fundamental

era só decidir:
imagem estática ou 
caneta no papel?

uns rabiscam, apagam 
e fazem da palavra
seu instrumento
outros enquadram, capturam
e confinam o resultado 
em um quadro emoldurado

a indecorosa dialética: 
imagem verbosa ou
caneta imagética?


DOBRADURA

Dobrei a esquina
em duas partes
e guardei no bolso de trás.
Olha o flagrante!


terça-feira, 4 de outubro de 2011

Virgindade


Por Denise Fernandes

        E acordei com a sensação que havia perdido a virgindade. Como a virgindade? Qual virgindade que não havia? Mas tinha a sensação. De faltar como se fosse uma membrana vaginal invisível, algo tão tênue que eu nem havia sabido que existia, mas fundamentalmente algo azul, começando e se rompendo, invadindo como um mar de champanhe e chá de erva-cidreira. Você tem toda a corrupção mesmo de um vinho francês. Hoje na tarde azul procurei seu presente. Um cara me paquerou, mas só porque comi um bolo de chocolate com muita vontade. E nem achei seu presente. No ônibus, um poeta repentista de 84 anos recitou: “Rosa, cravo, flor de laranjeira...” E eu não lembro o resto porque claro que pensei em transar de novo com você, ali no ônibus com perfume de flor de laranjeira. Eu molhada pensando estranha: é feriado ou é dia de semana? E lembrei logo: ah, é dia de semana. E soube logo: estou estranha, não sei que dia é. Às tantas da manhã, chorei. Chorei porque senti que tinha perdido minha virgindade de novo com você e isso era incompreensível. E chorei porque tive vontade e estava numa hora ótima para chorar. E vomitei verde não sei porquê. E ainda tive a sensação que seu instrumento talvez fosse o violoncelo. Num sei se imaginei ou sonhei acordada mesmo a gente transando de novo. Será que isso é “fazer amor por telepatia”, como diz a Rita Lee? Sei lá...
        Só sei que tô de saco cheio.
        No meu tempo, saco cheio era palavrão e eu tinha que sair da mesa toda vez que falava saco cheio na mesa. Eu explicava para minha mãe chorando que sair da mesa porque eu estava desagradando tudo bem, mas sem entender...
        Porque saco cheio é palavrão?
        É porque eu não tenho saco?
        Minha mãe ria. Ela falava: depois eu te explico, não é assim a vida, Denise, depois eu te explico. Essa coisa de boas maneiras, seu pai não é assim, ele acredita e não acredita, mas ele acha que um dia cê pode precisar, porque todo ano entra governo e sai governo... A gente nunca sabe, veja só a Segunda Guerra Mundial.
        Talvez seja por isso que simplesmente aluguei dançando na chuva. E desisti de você. Tô sem grana, mas pode ficar até com o livro do Neruda que você me tomou e ficou de me devolver porque sei que você leu pelo menos duas vezes na minha frente o poema Orégano (do Neruda, é claro). Esqueci um colar. Talvez seja a mandala da saúde de prata que a Cleide me deu no meu aniversário de 40 anos. Porque não sei onde tá. Mas eu tô aqui. A Cleide deve de tá nalgum lugar e ocê deve di tá bem, porque notícia ruim chega depressa. Eu tô só um pouquinho com a minha cabeça no meu netinho que não tá muito bem de saúde e também tô um pouco preocupada com a saúde do filho de uma moça lá de Piracicaba que também já passou dos 40 e vive apaixonada.
        Num pense que tô triste porque já fiz amizade nova. Abri uma conta no Ronaldo e como ia desmaiar ele me vendeu um côco fiado por 3 e cinquenta. Não me diga que o coco perdeu o chapeuzinho circunflexo porque eu já tô naqueles dias de carregar o livro do Wesley Duke Lee de cima prá baixo só porque ele morreu antes que eu escrevesse minha cartinha de fã. Se eu soubesse que virgindade fictícia era tão importante não tinha perdido.

domingo, 2 de outubro de 2011

UM (breve conto)

Por Camila Santana Romeu

06:00 da manhã.
O despertador anunciava que mais um dia havia raiado lá fora, mas o sono queria impedi-lo de levantar-se. Era comum aquela cena, e não era preocupante, porque o fim era sempre o mesmo: ele esperaria mais alguns minutos até que estivesse suficientemente atrasado para levantar apressado, tomar um banho de qualquer jeito, sair calçando os sapatos, e só quando chegasse ao trabalho perceber que havia esquecido algo importante, que era imprescindível e que deveria estar na mesa do chefe naquele dia... no primeiro horário.
Mas neste dia, ele não demorara muito para levantar-se, parece que sentia já estar atrasado para alguma coisa, mesmo dentro do horário...
Tomou seu banho e de tanto que demorou, precisou sair às pressas de casa. Tudo voltou ao normal! Como de costume esquecera o relatório de vendas que seu chefe havia pedido há aproximadamente um mês.
                Não tinha carro, nem bens materiais que lhe amparariam se continuasse a desafiar a paciência de seu chefe. Morava mal: apartamento pequeno, sujo, desorganizado. Cheirava a nada e ao mesmo tempo a tudo, mas não tinha cheiro ruim, tinha cheiro de gente.
                O salário que recebia era tão vergonhoso que mal conseguia pagar suas contas, comprar itens de necessidade crítica e ainda passear com a namorada nos finais de semana. Muitos se perguntavam como aquele moço raquítico, de cabelos ralos, olhos e pele de cores tão comuns, que ninguém notava, como aquele rapaz poderia ter uma namorada tão bela como era aquela moça?...
                Ele pouco conversava com os vizinhos, porque eram todos mexeriqueiros e viviam da desgraça alheia. Como isso nunca o agradara, preferia viver fechado em sua casa, e partilhar a vida apenas com os amigos mais próximos, e a belíssima namorada, que ninguém entendia por que raios era namorada dele!   
                A caminho do ponto de ônibus, o rapaz  relembrava como se conheceram. Era uma noite um tanto sombria, porque chovia muito e o céu estava completamente escuro (alguns dizem que talvez por não ter visto bem seu rosto, ela tenha se apaixonado depressa por ele, e quando o pôde ver na claridade do dia, já era tarde: estava louca de amor pelo pobre coitado!!). A jovem dirigia seu carro quando a chuva jogou para o meio da avenida um ser desorientado, todo molhado e com frio. Ela parou rapidamente, antes que o atropelasse e foi ao encontro dele. O primeiro olhar foi suficiente para que eles entendessem que deveriam ficar juntos, que a vida, a natureza, Deus, tudo e qualquer coisa os havia colocado ali, naquele momento, para descobrirem o amor. Depois deste olhar, nunca mais se largaram um dia que fosse. Já estavam juntos há dois anos, e tinham planos de casar.
                 Ela com 23 anos, ele com 24. Ambos gostavam de ler a poesia de Dos Anjos, os contos do Rubião, as músicas góticas e os filmes de drama, terror e suspense. Era curioso porque eram alegres e gostavam de contar piadas. Eram inteligentes, mas assistiam à novela da Rede Globo religiosamente todos os dias. Liam jornais juntos, mas também as revistas de fofoca, horóscopo e o resumo da semana da novela das 8. Conversavam sobre política, astrologia, gastronomia, física, química, mas é claro, sobre a bendita novela das 8... Maldito ritual que consome, aprisiona e condiciona os seres humanos!
                 Pois bem, ele continuava a caminhar até o ponto de ônibus. Lembrar da namorada fazia-o sentir-se bem. A última vez que a vira foi no fim de semana, já era quarta-feira. Ele estava com saudades dela. Naquele fim de semana passaram horas e horas, trancados no quarto, mas ele precisava de novas lembranças, porque o stress da semana já o havia corrompido.

                  Continua no próximo domingo...