Por Fabio Ramos
Foto: Renato Parada |
Nesta entrevista exclusiva ao Texto de Garagem (concedida na cozinha de seu apartamento, em São Paulo, sob os olhares curiosos dos gatos), ele nos conta sobre o processo criativo, a transição dos quadrinhos para a literatura e muito mais. Acompanhe a conversa logo abaixo.
Lourenço Mutarelli - Acho que escrever é um ato solitário. Escrever é um ato que você tem que estar sozinho, bem sozinho mesmo, desligado de muita coisa. Eu estou num processo de voltar a escrever agora e hoje não foi muito porque, justamente, não consegui me isolar o suficiente. Não acho que a existência seja solitária, embora toda existência seja muito solitária de alguma forma, né?
TG - Muito se fala do caráter autobiográfico de sua obra. Até que ponto isso é verdade?
LM - Eu uso muito as experiências que vivi. Às vezes, algumas experiências que estão lá são verdadeiras e, às vezes, elas estão disfarçadas ou transformadas. E tem muito de ficção também. Muito que surge ali. É uma parte importante, mas que deve ser 40% da minha obra. Tem coisas que são mais autobiográficas e tem coisas que são baseadas em alguma vivência. Uma vez falei numa entrevista que eu uso muito um repertório de emoções, de coisas que vivenciei. Mesmo que não estejam descritas como foram, mas elas têm uma carga emotiva, de coisas que eu vivi. Isso é mais característico.
TG - E tem alguns pontos que a gente até identifica. Talvez seja o caso de O Natimorto, do cara que fuma bastante. Ou mesmo do Miguel e os Demônios, cujo personagem é um policial... Eu li que seu pai e seu irmão também trabalharam na polícia, né?
LM - É... Mas o Miguel e os Demônios foi uma encomenda. Eles me deram um argumento que era esse: a história de um policial que se apaixona por um travesti. Eu sempre parto disso, da minha bagagem emocional, a que isso me remete. E minha avó materna trabalhou na parte burocrática da polícia, meu pai era delegado, meu irmão era investigador. Então, todas as histórias policiais que aparecem no livro foram contadas por eles. Todas têm uma base real. E na parte do travesti, a primeira coisa que lembrei foi do tarô. O diabo é um travesti na iconografia de Marselha. Não só lá, mas onde mais me baseio. E aí eu comecei a pegar histórias... Estudei demonologia uma época e tinha umas histórias interessantes ali, que são ditas como verdadeiras. Misturei também esse outro repertório, que não vem de uma bagagem 100% autobiográfica, mas vem do cruzamento de vivências e coisas que eu tinha lido ou pesquisado.
No caso de O Natimorto, o cara fuma muito, como eu fumo, mas eu não me identificava em nada com o personagem até ele ser adaptado pro teatro pelo (Mário) Bortolotto. O ator que fazia, o Nilton Bicudo, é muito parecido comigo. A partir daí, comecei a me enxergar um pouco nesse personagem. Mas é isso: tem alguma coisa, mas não é autobiográfico. O último álbum em quadrinhos que publiquei, o A Caixa de Areia, é uma falsa autobiografia. Eu uso a minha casa, a minha mulher, o meu filho, eu e alguns dos gatos, mas a história não é verdadeira. Eu misturo o ficcional com alguns elementos verdadeiros.
TG - Durante uma entrevista, você comentou que “Lourenço Mutarelli é um equívoco”. O que você quis dizer com isso?
LM - Esse é um problema sério da internet. Muita coisa que você fala fica lá. E às vezes filmado: tem você falando e são coisas que nem sei por que falei, ou não concordo, ou é alguma coisa de momento... Acho que tem um equívoco de pensar, por exemplo, que eu sou um sucesso. Algo nesse sentido, porque as coisas que almejo, ou que são um sucesso para mim, não têm nada a ver com o lado profissional e eu estou muito longe de alcançar. Talvez tenha sido nesse contexto que eu declarei isso. Da minha parte, honestamente, não lembro porque falei.
TG - Em uma postagem antiga de seu blog, você comenta que há sempre um processo em sua cabeça. Como funciona o seu processo criativo?
LM - Todas as minhas histórias partem de alguma coisa muito pequena, de alguma fagulha que eu sinta que possa incendiar. Parto de pequenas ideias que eu guardo e que ficam na minha cabeça. Até chegar o momento de trabalhar com elas, para ver onde isso vai dar. A parte mais importante do meu processo, que é algo que comecei a fazer em 2007, são os sketchbooks. São cadernos que eu chamo de A Vida com Efeito. Geralmente estou meio bêbado, alguma coisa assim, e vou rabiscando, escrevendo coisas sem sentido. De vez em quando eu folheio (o material) e vem muita ideia dali. Isso é um processo importante para a minha criação nesses últimos tempos. Eu tento me disciplinar, trabalhar todo dia, mesmo que no dia seguinte eu jogue fora algo que fiz. Ou tudo... O problema é que às vezes estou envolvido em muitas coisas diferentes e isso me desconcentra. O Marçal Aquino fala que, conforme vai escrevendo, é como se a história estivesse sendo contada pra ele. Eu gosto muito de pegar um pequeno argumento que tenho, às vezes algo que nem chega a ser um argumento, mas um ponto de partida que eu ache estimulante, e ir seguindo, vendo essa história sendo contada pra mim. Essa é a essência da origem do meu trabalho.
LM - É muito diferente. Quadrinho exige muito mais pesquisa. Às vezes também me aprofundo em alguns temas, mesmo que não vá usar tudo no livro, mas eu tento. Eu tenho um tempo de pesquisa, de estudo, mas no quadrinho isso é muito maior porque tem a parte da pesquisa imagética. Eu tenho que pesquisar, ambientar a história, ver quem são esses personagens, como eles se vestem. Construir esse universo em imagem é muito trabalhoso. Só começo a desenhar quando o roteiro do quadrinho está pronto e vou levar de 10 meses a um ano desenhando isso. Eu acabei um livro ilustrado agora que fiquei nesse processo por mais ou menos 10 meses. Os últimos álbuns que trabalhei tinham em média 100 páginas. E na literatura, quando termina o livro, está pronto, já acabou o trabalho... É um processo muito diferente. A única vantagem é que, enquanto estou desenhando, a cabeça fica livre e vem muita ideia que dá pra aproveitar depois.
TG - Como se deu a transição dos quadrinhos para a literatura? Foi algo planejado?
LM - Não, foi bem acidental. Eu estava com a ideia de O Cheiro do Ralo e pensei que... Eu tinha acabado de ler algumas coisas que foram muito visuais para mim. Uma delas foi o Capão Pecado, do Ferréz. Fiquei muito impressionado como o texto me levava pra algo muito mais real do que se eu lesse quadrinho ou visse alguma coisa desenhada e tal. Então quis experimentar, causar uma ilusão maior do que através dos quadrinhos. E fiz muito rápido. Em cinco dias fiz O Cheiro do Ralo e foi totalmente acidental. Eu comecei e não consegui parar. Quando parei, a minha mulher estava viajando. Assim que ela voltou, passei pra ela ler. Ela apontou alguns lugares que não estavam muito claros ou muito bem resolvidos. Aí eu trabalhei mais uns 10 dias e ficou pronto. Não pensei que estava fazendo um livro. Eu só fiz o livro sem perceber.
TG - O Ferréz dedica o Capão Pecado a você, não é mesmo?
LM - É... E eu devolvi (a dedicatória), porque foi muito estimulante ler o livro dele. Tenho muita coisa pra ler, mas não tenho tempo. Até fujo um pouco dos contemporâneos, porque tem muita coisa que eu quero ler. E é difícil você pegar algo novo que te atinja mesmo. Mas nesse eu entrei e foi muito bom. Foi muito estimulante ler e me deu muita vontade de escrever. Foi muito em função disso. E aí comecei a misturar e a lembrar de outras coisas que eu tinha lido recentemente. Muitas dessas coisas aparecem no livro e são citadas como se o personagem estivesse lendo ou lido.
TG - Como os seus fãs dos quadrinhos encaram o Lourenço Mutarelli escritor?
LM - São públicos muito diferentes. É um público de quadrinhos e outro de literatura. E são públicos que não transitam muito, né? O meu público cresceu em função de pessoas que viram o filme O Cheiro do Ralo e aí, pela primeira vez, tiveram contato com a minha obra e foram procurar outros livros meus. A maioria do meu material em quadrinhos está esgotada, tem pouca coisa disponível. Mas sei que muitos que liam os quadrinhos nunca leram os livros e tem alguns que comentaram gostar mais dos livros. Eu também prefiro os livros.
TG - O processo de trabalho na Companhia das Letras, sua editora atual, é muito diferente da Devir?
LM - Muito diferente. Muito diferente, porque eu tenho um editor, coisa que eu nunca tinha tido. Ele lê os originais e, às vezes, a gente negocia algumas coisas do livro. Às vezes o livro sai como estava, mas passa por uma revisão, que nem isso eu tinha na Devir. E às vezes rola um processo editorial mesmo, que é mais trabalhoso. Detesto mexer em coisa que eu considere pronta. Isso é muito desgastante pra mim. Sinto que melhora e muito o olhar do editor, assim, a coisa de editar o texto como se fosse um filme, mudar um trecho ou cortar um capítulo antes... Esse tipo de detalhe eu acho bem interessante. Mas mexer na estrutura ou em personagem, isso é muito desgastante. Tive que fazer isso poucas vezes, mas, quando foi feito, são livros que eu travei e vou ter que voltar em algum momento, como o de Nova York, do (projeto) Amores Expressos.
TG - Em dez anos dedicados à literatura, foram seis romances lançados, né?
LM - Eu preciso pensar. A Arte de Produzir Efeito sem Causa, O Natimorto, Jesus Kid...
TG - Miguel e os Demônios, Nada Me Faltará...
LM - E O Cheiro do Ralo, né? São seis livros. Tem mais um, esse aí que eu terminei, mas vou voltar nele. Pra mim já estava pronto, mas acho que vou reescrever... Então, são seis livros.
LM - Para mim, (essa produção) é até defasada, porque eu sempre trabalho um livro por ano. Sempre, desde que comecei publicar meus álbuns. Era quase um livro por ano. Nesse meio tempo tiveram cinco peças de teatro que escrevi e ainda participei de outros projetos que não são de literatura. Mas gosto de trabalhar pelo menos um livro por ano. Eu acho importante e tenho essa necessidade. Tem pessoas que falam que sou uma fábrica de produzir e tal, mas é o meu ritmo. Acho que cada um tem seu ritmo. Meus livros também são de fôlego curto. (Eles) têm, no máximo, 100 páginas, cento e poucas páginas. É uma característica (minha).
TG - Como você classifica a sua literatura?
LM - Não sei. Acho que também não cabe a mim classificar. Mas é difícil, é difícil... Não sei como classificar. Não sei mesmo.
TG - As suas histórias – e os seus personagens – são sempre permeados por um universo de humor negro. Você enxerga uma influência tragicômica na sua obra?
LM - Ah, eu acho que tem. E tem muito o meu olhar. O meu olhar é muito... Eu tenho um humor negro cotidiano, é uma característica minha sim. Dizem que têm coisas que não se brinca... Sou o tipo de pessoa que brinca com essas coisas. Nunca tive um limite. Claro, quando é o meu trabalho, eu tenho mais bom senso. Agora, com as pessoas que convivo e nas minhas brincadeiras domésticas, não tem essa censura.
TG - Mas, hoje em dia, nós vivemos na época do politicamente correto. Você não pode dizer nada, que todo mundo se ofende...
LM - Isso é ridículo, isso é muito ruim. Eu acho que isso uma hora passa. Não é possível que (isso) fique, né? Mas sei lá.
TG - Além da participação em alguns curtas-metragens, você fez uma ponta no filme baseado em O Cheiro do Ralo e o personagem principal de O Natimorto. Você já tinha atuado antes?
LM - Eu tinha feito um curta-metragem pra USP, que o menino me convidou para ser protagonista. Nunca tinha pensado nisso, mas estava escrevendo minha primeira peça de teatro e, às vezes, os atores reclamavam que nem todo diálogo dava para ser verbalizado e tal. Então achei interessante fazer essa experiência e tentar entender o outro lado. E aí, depois disso, foram aparecendo convites e eu fui fazendo. Mas também acho que é algo que já cansou. Fiz mais duas participações com a Anna Muylaert, fiz outros curtas, atuei numa peça com o Bortolotto. Não ia mais fazer, pra mim já tinha encerrado (o ciclo). Percebi que eu entrei nessa como um policial infiltrado mesmo, um autor querendo vivenciar o outro lado. Como material, como bagagem, foi bem legal. Por mim eu já teria encerrado. Mas, no mês passado, já me envolvi em mais dois filmes de amigos, que me chamaram para uma pequena participação. O Bortolotto disse que está escrevendo uma peça pra gente e talvez eu faça. Mas não é uma coisa que... Não tem mais o prazer que tinha quando comecei a brincadeira.
TG - Você acha que a sua atuação mais intensa foi realmente a do filme baseado em O Natimorto?
LM - Ah, sem dúvida.
TG - Aquela cena das baratas, por exemplo, deve ter sido complicada pra fazer...
LM - Não, foi uma cena muito tranquila. Eu tinha muito medo dessa cena desde que começou o roteiro. E achava aquilo totalmente desnecessário. Mas eu trabalho muito com a concentração, né? Quando estou trabalhando, eu me foco muito. Estou sempre muito concentrado. Então, a cena foi mais tranquila do que imaginava. Continuo não gostando, e tendo aflição de barata, mas a cena foi bem mais tranquila do que eu pensei que seria.
TG - O seu nome tem sido bastante citado, nos últimos anos, por causa das adaptações cinematográficas de seus livros. Não chega a ser curioso que, mesmo com toda essa repercussão, você tenha lançado um livro como o Jesus Kid (que não deixa de ser uma crítica ao cinema)?
LM - O Jesus Kid era uma encomenda do Heitor Dhalia, que é o diretor de O Cheiro do Ralo. Ele me deu o argumento que era a premissa do livro, baseado no Barton Fink e no Adaptation, (sobre) um cara que fica três meses preso num quarto de hotel. Eu aproveitei pra lavar muita roupa suja, muito mal-entendido ali no meio. Foi divertido fazer. E o mais curioso é que o Heitor quis fazer o prefácio e aí ficou mais bizarro ainda... Mas foi divertido pra caramba fazer.
Como o bate-papo rendeu quase uma hora de gravação, o restante da entrevista será publicado na próxima quarta. Não perca!
Parabéns ao Fábio Ramos e toda a equipe. Ficou muito bom!!!
ResponderExcluirObrigada Lourenço Mutarelli pelo carinho com essa turma tão talentosa!
beijos
Lígia Menna