terça-feira, 22 de setembro de 2020

Contemporâneo

Por Denise Fernandes




Só ontem percebi como Zeus foi bondoso. Antes achava que havia sido injusto com Prometeu, castigando-o, quando ele só queria ser bom e generoso com a humanidade. Mas até que foi pouco aquela águia de Zeus comer tantas vezes o fígado de Prometeu.

O que o homem tem feito com o fogo? Zeus sabia que o fogo não estava em boas mãos, estando em poder dos homens. O homem é devorado pelo seu próprio fogo  e, por ser devorado, devora o ambiente à sua volta. Seu desejo, que é fogo, incendeia sua alma e inteligência.

Na grande ânsia da ambição humana, sucumbe o herói e a paz do clima. O ciclo natural em que se morre e renasce. E então, não renasce mais. Morre a espécie, enquanto o ser humano procura a cura para sua ansiedade. Como curar o homem de si mesmo? Assim, olhando a crueldade da humanidade, eu mesma me amarro em medos, suspiros, angústias estranhas. Como um vírus em mutação.

No centro de São Paulo, onde o mar de gente era o próprio pulsar da cidade, a rua Direita encontra-se vazia. Nós optamos pelo isolamento social; por mais contraditório que seja essa solidão compartilhada. Somos mais estatística que gente atualmente. Mas não me parece ruim ter me tornado estatística.

No tempo em que eu era gente, ficava muito confusa, dividida entre o medo e a coragem. Agora ficou mais fácil, porque ficou só o medo mesmo. E o sonho de uma solidão sem câmeras, uma sociedade com menos solidão.

A única concentração de pessoas que vi, respeitando o distanciamento social, assistia a uma apresentação de duas mulheres. O que faziam elas? Um amigo me disse: “estátua viva”. Porém, era mais que isso: havia essa flutuação, essa distância compartilhada por um bastão. A mulher flutuava no ar, sorrindo, e suas roupas alaranjadas se destacavam no cinza da cidade.

Em pleno viaduto do Chá, consigo rir por debaixo da máscara (e me deslumbro diante da arte). Não parecia estátua viva, pois a mulher que flutuava tinha um sorriso que não era apenas vivo, era um sorriso verdadeiro. Ela estava plena. A cidade é que parecia uma estátua de cemitério, uma estátua viva, onde os carros e o lixo circulavam sem cessar. Sim, como um retrato do contemporâneo.

Milhões de Prometeus esperam a águia de Zeus, seu castigo necessário, como um novo imposto. O fogo que arde destruindo as florestas é o mesmo que nos fará vítimas. Perdemos o dom. Mas como essas minúsculas flores que rompem o asfalto, e respiram antes que os funcionários da prefeitura venham com suas enxadas e foices, arrancando os matinhos e deixando o cinza mais cinza, lançamos nossas raízes. Tocar o ar é maravilhoso.

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