terça-feira, 24 de março de 2020

Jogo do contente

Por Denise Fernandes




Quando eu tinha 9 anos, segundo o diagnóstico da minha mãe, eu estava muito "malcriada". Uma amiga dela recomendou, então, a leitura de "Pollyanna", de Eleanor H. Porter. Amei o livro. Quis ler "Pollyanna moça". Continuei "malcriada", "respondona", porque acho que uma certa rebeldia faz parte da minha natureza mesmo. Mas a leitura me fez muito bem. E o aprendizado do jogo do contente.

No livro, a Pollyanna se fode várias vezes, mas ela sempre pensa que pode ser pior, fazendo assim o jogo do contente; que consiste em ficar feliz mesmo que esteja dando tudo errado. Jogo útil em tempos de coronavírus. Não dá para saber com o que se preocupar mais: com a crise da saúde, com a crise econômica, com a morte que pode bater na porta a qualquer minuto...

Nesse clima de terror atual, lembrei do útil "jogo do contente". A alegria de não ter tantos horários e compromissos, a orquídea linda (presente da minha filha) que resolveu desabrochar agora, o conforto de ficar em casa andando de meias pra lá e pra cá, a conversa longa sobre assuntos variados com a minha mãe, a delícia de ler um livro novo, o diálogo com meu filho, a comida saborosa que ando fazendo sem pressa. Vivendo e aprendendo a jogar.

Entre uma notícia assustadora e outra, surge um medo antigo - junto com um novo. Ando caçando as boas recordações dentro de mim: meus dois partos, a infância dos meus filhos, todo o carinho que meus filhos me deram. Minha mãe fazendo bolinho de chuva em dias de chuva, a risada do meu irmão, a risada do meu pai, ficar na cama quentinha. Abraços, abraços, beijinhos, pássaros na primavera, uma garça pescando, um pôr do sol que não terminou.

No jogo do contente, estou sempre ganhando. E todos estão. Diferente de todos os jogos na vida, o jogo do contente não acaba. Não há eliminação nesse campeonato.

Nem sempre é fácil o jogo do contente. Ele exige mais que engolir o choro, ignorar dificuldades, ou buscar eufemismos. Ele exige um olhar atento, minucioso, sensível, e cheio de misericórdia. Onde a gente ri, quando podia só chorar. Onde a gente é feliz, mesmo sem entender a dor.

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