Por Amilcar
Neves*
Jovens, ambos. Ele branco, ela
negra. O filhinho, de cinco anos, mulato de cabelos lisos, brinca com o
carrinho do supermercado, empurrando-o para a frente, até atingir de leve a
mãe, e para trás, até bater na perna do cliente na fila. O pai pega o menino,
coloca-o no carrinho vazio - as compras na esteira do caixa - e faz uma
brincadeira com ele, sorrindo; não vê, na atitude do filho, agressões à mãe ou
ao desconhecido. O garoto se estica para pegar algo, a mãe procura o cartão de
crédito para pagar as compras, o pai agarra o filho e o abraça. Em seguida,
coloca-o de pé no chão, para lá dos limites do caixa.
- Olhem, eles já devem estar em
Santo Amaro! - um outro casal, sem filhos, passa com as compras ensacadas num
carrinho e fala para os dois.
É sábado, é início de tarde e ali
da imensa vitrina do supermercado na Costeira do Pirajubaé divisa-se um cenário
deslumbrante e ensolarado, de topo para o mar da Baía Sul, para as montanhas no
Continente, para o céu distante e tão próximo. Em torno, os morros revestem-se
de verde, no meio do qual destacam-se pelas copas fechadas e compridas,
dispostas na vertical, alguns eucaliptos; pelos caules pálidos e retos,
inflexíveis, distinguem-se muitos garapuvus que no topo se abrem para os lados,
loucos para que chegue a primavera a fim de se cobrirem de flores amarelas,
amarelando toda a Ilha.
Cores. Um sábado pintado em technicolor
com tecnologia natural. Sem pagamento de royalties.
Então é que se revela, quando a
muito custo trazemos de volta nosso olhar para o interior da loja, que pai e
filho vestem camisetas idênticas, com um grafismo circundado pela frase que me
deixa horrorizado: "Desenvolvendo o caráter de Cristo".
- Meu Deus! Dois mil anos já e
esse senhor ainda não tem o caráter formado? - pensei quase em voz alta, e rezo
aos céus para que efetivamente ninguém me tenha ouvido.
Escuto que os quatro adultos são
da Assembleia de Deus, que se dirigem para um evento piedoso em Santo Amaro da
Imperatriz e que seu objetivo é desenvolver o caráter de Cristo nas crianças e
nos jovens da sua fé.
Um dia único
Todos os dias são únicos, é
verdade. Não se registrou na História, até hoje, nenhum caso em que uma
determinada data haja se repetido em momentos distintos. Isto é ficção
científica, não a realidade rasteira do nosso cotidiano.
No entanto, o sábado passado
revestiu-se daquelas características que fazem valer a pena vivê-lo cada
minuto: o frio finalmente se apresentou, o céu andou claro, o ar mostrou-se
fino e transparente, o azul impecável cobriu nossos ócios, uma lancha singra a
Baía Sul em direção à Ponte Hercílio Luz (ao que resta da ponte), o mar
espreguiçava-se espelhado e convidativo. Desenhando o horizonte além da Baía, o
perfil senoidal do Cambirela e o serrilhado da Serra Geral vestiam-se de tons
azulados, em contraste com o verde exuberante dos morros na cidade.
Um dia também de 50 anos.
50 anos
de um dia
Manoel Osório tem muitos amigos
(o que não o impede de cultivar inúmeros desafetos também). Amigos de todas as
idades. Um destes o convidou para uma celebração na adega subterrânea de
sofisticada loja de vinhos da Ilha. Foi no mesmo sábado de tantas cores. Um
sábado coroado por ótima comida, maravilhoso espumante, excelente vinho e gente
que só encontra em festas de família.
Tratava-se da comemoração das
bodas de ouro dos amigos Ana e João Camargo. De presente da Ana, o João ganhou
a autorização para fazer uma viagem com um filho e dois netos cumprindo um roteiro
inusitado pela fronteira oeste do Rio Grande do Sul. Partem nesta
segunda-feira. Voraz colecionador de histórias, Manoel Osório já reservou
cadeira para ouvir os relatos do périplo.
De presente, a Ana quis duas
semanas de descanso.
*Crônica publicada no jornal
"Diário Catarinense" de 21.07.14
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