quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Anatole, o francês

Por Amilcar Neves*
 

A casa da minha infância e adolescência, em Tubarão, contava com um escritório em que meu pai recebia seus clientes. Apesar de atuar como promotor público, na época a atividade paralela como advogado, mais do que tolerada, era permitida. Pelo que eu entendia, isso se dava pelo fato de o Estado pagar muito pouco ao Ministério Público, a ponto de se fazer imprescindível uma complementação de renda. Não sei. Pode ser que nem fosse isso, mas havia o escritório, havia clientes e havia uma placa de advogado pregada na parede de frente da casa, a do escritório.
 
 
A peça era dotada de escrivaninha profissional, papeis e todos os diversos itens de papelaria que se usavam nos escritórios (lápis, borracha, o telefone fixo, vidro de tinta para caneta-tinteiro, mata-borrão, clipes, papel carbono, fitas de impressão, em geral com uma banda preta e outra vermelha, e as estrelas do pedaço: um grampeador e, sucesso absoluto que as crianças da casa usavam para fabricar confetes, mesmo em época distante do Carnaval, um furador de papel). Completava o enxoval do reduto a indispensável máquina de escrever - logicamente de acionamento manual. Eu não a usava: porque não me era permitido mexer no equipamento, e por consequência estragá-lo, e porque à época já costumava escrever à mão.
 
 
Havia ainda dois enormes armários de madeira que se encaravam de paredes opostas. Com portas envidraçadas de correr, continham... livros. Muitos livros. Por trás da poltrona de braço fabricada em madeira, senhora absoluta da escrivaninha que a abrigava, ficavam os compêndios de Direito. À frente, a literatura. Romances. Nada de contos, menos ainda de poesia. Crônicas, então, nem pensar.
 
 
Havia uma predileção, que suspeito não fosse apenas do meu pai, mas de toda a sua geração, pelos franceses em geral: de cabeça, lembro-me de encontrar por trás daqueles vidros gente como Stendhal, Voltaire, Zola, Flaubert (o que incluía Salambô, precisamente o exemplar de onde saiu o meu nome), um pouquinho de Balzac (mesmo porque muito Balzac ainda é pouco frente à sua produção), Hugo e Dumas.
 
 
O maior deles
 
 
Ao lado de Machado e de Eça, abundantes (mas apenas com seus romances), reinava Anatole France. Herdei a coleção completa de Eça de Queirós, doada em vida por meu pai. Os demais, após sua morte, ficaram com minha mãe. Com a morte dela, desconheço o paradeiro desse povo saudoso.
 
 
Intrigava-me, por ser em espanhol, um exemplar de La Isla de los Pingüinos, todo anotado a lápis com a tradução de diversas palavras do texto. Como não conseguia a novela em português, meu pai conformou-se em comprar uma edição em castelhano.
 
 
Mas Anatole pontificava, era um ícone, sem dúvida, todo publicado no Brasil. Contava com uma credencial indiscutível em termos de qualidade (pelo menos assim eu pensava): o Nobel de Literatura em 1921, três anos antes do seu falecimento aos 80 anos.
 
 
De súbito, vejo morrer o ídolo do meu pai.
 
 
Pequena amostra
 
 
Durante décadas ninguém falou em Anatole France. Como se ele não tivesse existido. Como se jamais houvesse escrito algo.
 
 
Agora, porém, ao menos no Brasil, ele vem ressuscitando aos poucos. Essa retomada da sua obra me acende a esperança de topar por aí, qualquer dia, com A Ilha dos Pinguins (que não cheguei a ler).
 
 
Já na segunda página de À Sombra do Olmo, após ponderar que "então não merece nossos louvores o senhor prefeito Worms-Clavelin, que encara com favor nossas escolas e nossas obras?" e lembrar que "receberemos amanhã à nossa mesa o general da divisão e o senhor presidente", o cardeal-arcebispo pede que lhe mostrem o cardápio.
 
 
"O cardeal-arcebispo o examinou, emendou, aumentou, e fez a recomendação expressa de que fossem encomendadas as carnes a Rivoire, o larápio da prefeitura."
 
 
Não é uma graça?

*Crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 20.07.14

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