Por Amilcar
Neves*
A casa da minha infância e
adolescência, em Tubarão, contava com um escritório em que meu pai recebia seus
clientes. Apesar de atuar como promotor público, na época a atividade paralela
como advogado, mais do que tolerada, era permitida. Pelo que eu entendia, isso
se dava pelo fato de o Estado pagar muito pouco ao Ministério Público, a ponto
de se fazer imprescindível uma complementação de renda. Não sei. Pode ser que
nem fosse isso, mas havia o escritório, havia clientes e havia uma placa de
advogado pregada na parede de frente da casa, a do escritório.
A peça era dotada de escrivaninha
profissional, papeis e todos os diversos itens de papelaria que se usavam nos
escritórios (lápis, borracha, o telefone fixo, vidro de tinta para
caneta-tinteiro, mata-borrão, clipes, papel carbono, fitas de impressão, em
geral com uma banda preta e outra vermelha, e as estrelas do pedaço: um
grampeador e, sucesso absoluto que as crianças da casa usavam para fabricar
confetes, mesmo em época distante do Carnaval, um furador de papel). Completava
o enxoval do reduto a indispensável máquina de escrever - logicamente de
acionamento manual. Eu não a usava: porque não me era permitido mexer no
equipamento, e por consequência estragá-lo, e porque à época já costumava
escrever à mão.
Havia ainda dois enormes armários
de madeira que se encaravam de paredes opostas. Com portas envidraçadas de
correr, continham... livros. Muitos livros. Por trás da poltrona de braço
fabricada em madeira, senhora absoluta da escrivaninha que a abrigava, ficavam
os compêndios de Direito. À frente, a literatura. Romances. Nada de contos,
menos ainda de poesia. Crônicas, então, nem pensar.
Havia uma predileção, que
suspeito não fosse apenas do meu pai, mas de toda a sua geração, pelos
franceses em geral: de cabeça, lembro-me de encontrar por trás daqueles vidros
gente como Stendhal, Voltaire, Zola, Flaubert (o que incluía Salambô,
precisamente o exemplar de onde saiu o meu nome), um pouquinho de Balzac (mesmo
porque muito Balzac ainda é pouco frente à sua produção), Hugo e Dumas.
O maior deles
Ao lado de Machado e de Eça,
abundantes (mas apenas com seus romances), reinava Anatole France. Herdei a
coleção completa de Eça de Queirós, doada em vida por meu pai. Os demais, após
sua morte, ficaram com minha mãe. Com a morte dela, desconheço o paradeiro
desse povo saudoso.
Intrigava-me, por ser em
espanhol, um exemplar de La Isla de
los Pingüinos, todo anotado a lápis com a tradução de diversas
palavras do texto. Como não conseguia a novela em português, meu pai
conformou-se em comprar uma edição em castelhano.
Mas Anatole pontificava, era um
ícone, sem dúvida, todo publicado no Brasil. Contava com uma credencial
indiscutível em termos de qualidade (pelo menos assim eu pensava): o Nobel de
Literatura em 1921, três anos antes do seu falecimento aos 80 anos.
De súbito, vejo morrer o ídolo do
meu pai.
Pequena amostra
Durante décadas ninguém falou em
Anatole France. Como se ele não tivesse existido. Como se jamais houvesse
escrito algo.
Agora, porém, ao menos no Brasil,
ele vem ressuscitando aos poucos. Essa retomada da sua obra me acende a
esperança de topar por aí, qualquer dia, com A Ilha dos Pinguins (que
não cheguei a ler).
Já na segunda página de À
Sombra do Olmo, após ponderar que "então não merece nossos louvores o
senhor prefeito Worms-Clavelin, que encara com favor nossas escolas e nossas
obras?" e lembrar que "receberemos amanhã à nossa mesa o general da
divisão e o senhor presidente", o cardeal-arcebispo pede que lhe mostrem o
cardápio.
"O cardeal-arcebispo o
examinou, emendou, aumentou, e fez a recomendação expressa de que fossem
encomendadas as carnes a Rivoire, o larápio da prefeitura."
Não é uma graça?
*Crônica publicada no jornal
"Diário Catarinense" de 20.07.14
Nenhum comentário :
Postar um comentário