Por Amilcar Neves*
Um aposentado de 77 anos mora com
a mulher em um sítio nos arrabaldes violentos de uma cidade violenta da Grande
Rio de Janeiro: ele, a mulher, o caseiro, os cachorros que cria e, mais
inofensivas, as orquídeas que cultiva. É assassinado em casa por três facínoras
que invadem o sítio, ludibriam os cachorros, ignoram as orquídeas, amarram o
caseiro e surpreendem o casal quando retornava ao lar: arrombaram a casa às 14
horas e, sem mexer em nada, esperaram pacientemente os donos chegar, lá
permanecendo por quase dez horas. Os bandidos
faturaram dois computadores, duas impressoras, joias, 700 reais, duas pistolas
e uma carabina calibre 12 da coleção particular do ancião. Suspeita-se
que outros dois meliantes, num carro, dessem cobertura ao trio cruel.
Um acontecimento trivial que não
merece mais a mínima atenção do telespectador e que, por consequência, é
ignorado pela imprensa, afora os destaques habituais nas seções
sensacionalistas que se nutrem de sangue ao tratar de gente que mal tem nome:
um João, uma Maria, um Antônio e três marginais é tudo do que se necessita para
identificar vítimas e assassinos. Do crime da véspera para o de hoje, mudam
apenas alguns detalhes sórdidos.
No caso, o velhinho vivia
retirado do mundo há três décadas, desiludido com a vida e remoendo o
esquecimento a que fora relegado. Andava bastante magoado com a instituição
pela qual literalmente dera o sangue - o dele e, muito especialmente, o de
outrem - e que acabou por abandoná-lo. Pelo menos era assim que ele enxergava a
situação. Considerava, judicioso, que não somente ele fora descartado, mas
muitos dos seus, colegas honrados que ombrearam com ele os mesmos ideais, as
mesmas lutas, idêntico fervor cívico e moral.
Paulo, na verdade, era o nome do
ancião que morreu asfixiado sobre o próprio travesseiro. Dos cinco filhos, não
tinha intimidade nem mantinha contato com nenhum. Embora fortes suspeitas
sugiram que teria relações estreitas com grupos de justiceiros da região, vivia
recluso no sítio com Cristina, de 40 anos, sua sexta esposa, a qual passou 25
anos ao lado do marido. Vasculhando a casa após o
bárbaro crime, policiais federais recolheram três computadores, mídias
digitais, agendas e documentos que seriam da época da ditadura militar,
inclusive relatórios de operações secretas. Naquele tenebroso período da vida
nacional, o tenente-coronel Paulo Malhães serviu no gabinete do ministro do
Exército e foi agente do Centro de Informações do Exército. Morreu no
dia 24 de abril, uma bela data.
Trinta dias antes, em 25 de
março, ele prestou depoimento à Comissão Nacional da
Verdade relembrando suas façanhas. Contou em detalhes como a ditadura mutilou e
desapareceu com os corpos de presos políticos. Segundo o velhinho, "para
evitar que fossem encontrados, os agentes dos serviços de repressão jogavam os
mortos em rios, em sacos impermeáveis e com pedras de peso calculado. Isso
impedia que afundassem ou flutuassem. O ventre da vítima também era cortado,
evitando assim que inchasse e voltasse à superfície. O objetivo era criar
condições para que o corpo fosse arrastado pelo rio. No caso de serem
encontrados, os restos mortais dificilmente seriam identificados, porque os
militares tomavam a precaução de arrancar as arcadas dentárias e os dedos das
mãos, antes de lançá-los às águas."
Em 1973, o gabinete
do ministro incumbiu-o de dar sumiço no corpo do deputado Rubens Paiva.
"Eu adorava meu trabalho", ele costumava dizer.
*Crônica
publicada no jornal "Diário Catarinense" de 30.04.14
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