Por Amilcar
Neves*
- Da Costeira, moço.
- Da Costeira?
- É. Aqui da Costeira do
Pirajubaé. É da Costeira que eu venho, seu moço. Ali que nasci, me criei, casei
e vivo até hoje. Sempre vivi ali e não deixo a minha Costeira por nada deste
mundo. Por dinheiro nenhum, por nenhum príncipe encantado que apareça. A Costeira
é o meu mundo. Tenho tudo ali, até o meu adorado Avaí é vizinho da Costeira, a
Ressacada fica logo depois do rio Tavares, antes do aeroporto.
- Sei onde fica o estádio do
Avaí, senhora.
- Fica ruim me chamar de senhora,
hem? Está me achando tão velha assim?
- Não, senhora, é apenas uma
questão de respeito. Afinal, a senhora é casada, acabou de me dizer isso.
- Ah!, agora vens me falar em
respeito? Mas quando eu passei não tiravas os olhos da minha bunda. Não tens
bunda em casa? Ou gostaste mesmo da minha?
- Bom, convenhamos que ela não
estava escondida. Ao contrário: enorme, no bom sentido da grandeza, passou
apertada nessas calças brancas justas que revelam tudo dos quadris para baixo,
as proeminências harmônicas tanto para as laterais quanto para a traseira, a
cinturinha estreita, a barriguinha de casada, as coxas fortes, o tornozelo
fino, tudo isso sua roupa mostrava, não fiz esforço algum para poder admirar
seus encantos.
- É, vi que o moço nem viu minha
cara quando passei antes...
- É porque só tenho dois olhos e
eles gostam de olhar ao mesmo tempo para o mesmo lugar. Ficaria estranho, não é
verdade?, se um olhasse para cima e o outro para baixo.
- O moço é metido a engraçadinho,
não é? Mas eu gosto disso. Pior são os que olham, querem comer a gente com os
olhos e depois saem reclamando que é uma indecência um decote como aquele ali,
por exemplo.
- Há muitos decotes circulando
por aqui hoje.
- Há muita mulher circulando por
aqui hoje. Mulheres casadas e bem comprometidas, todas. Nenhuma periguete.
Todas mulheres de verdade, não essas falsas imagens enganosas que aparecem nas
propagandas, no cinema e na televisão. Tudo, aqui, gente de carne e osso. De
carne, osso, manchas, cicatrizes, celulites, papadas, barrigas sobre o cós do shortinho,
seios caindo, rugas em volta dos olhos.
- E os maridos?
- Alguns ficam assim meio
cabreiros, mas logo se dão conta de que estão reparando nas mulheres alheias,
saudavelmente imperfeitas como as suas. O meu, por exemplo, às vezes fica meio
enfezadinho. Por isso que dei um jeito de vir falar com o moço: pra dizer que
se cuide e seja discreto. Mas ele já melhorou muito, o meu homem. Está mais
civilizado.
- Obrigado pelo aviso.
- Hoje ainda me perguntou pela
blusa azul. Com efeito, estava sugerindo que eu vestisse uma blusinha bem
decotada que deixa à mostra meio palmo de barriga. Eleva e valoriza meus
peitos, mas eu queria chamar a atenção para a bunda. Por isso vim ao
supermercado assim como o moço viu.
- Estou vendo.
- A gente se produz para
aproveitar esses dias em que todo mundo recebeu o salário e sai para fazer o
rancho do mês. Vem todo mundo pra cá, a gente passeia um pouco, se exibe um
pouquinho, coleciona os elogios dos olhares de admiração e interesse, nossos
homens também ficam satisfeitos com os colírios que podem apreciar, não
reclamam na hora de pagar a conta com aquele extra que a gente passou 30 dias
sonhando e todo mundo confere que cada ser humano é feito de perfeições e
defeitos. Depois, quando a gente chegar de volta à casa, a gente coroa o
passeio brincando um pouco enquanto os filhos ficam grudados na televisão.
Sem se despedir, deu-lhe as
costas e saiu rebolando.
*Conto
publicado no jornal "Diário Catarinense" de 07.05.14
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