sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Crônica filial

Por Mayanna Velame




Pai, ainda lembro do dia em que você foi embora de casa. Sim, eu ainda me lembro, embora esta lembrança já esteja um pouco embaçada na mente, feito chuviscos numa janela em noites úmidas.


Pai, você não saiu para comprar cigarro ou cerveja. Você se foi porque, talvez, tua casa já não significasse aquilo que precisavas para ser feliz. É pai, você procurava o mundo e suas tentações. A vida é uma aventura, fato que tu vivenciaste precocemente. Aos treze anos de idade, o senhor já era da rua, das esquinas, do vazio de sua própria solidão.


Mas pai, veja bem...Você também me deixou só. No ápice da minha adolescência, te vi partir sem ao menos me lançar alguns retalhos, como pegadas, para que eu pudesse segui-lo. Neste meu desamparo, pensava em você, nas tuas escolhas e também nas tuas opções. Porém, na tua opção, pai, caberia apenas voltar. Nós sabemos que todo retorno exige arrependimento  para o perdão brotar e florescer o amor (do lado esquerdo do peito).


É verdade, pai! Durante cinco natais, esperei por você. Foram anos de ansiedade. Devo dizer que teus telefonemas não me emocionavam. Eram secos, frios, tua voz entrecortada não ecoava dentro de mim. Entenda: meu desejo era desligar e fazê-lo sofrer com a ausência que plantaste na vida daqueles que o amavam.


Ah, pai! Mas houve um dia em que você voltou, pois a cama em que dormias não era quente; e muito menos macia. Voltaste por que conhecias a força de um sentimento chamado compaixão.


Naquela mesa, no assento da cabeceira, avistei você. Um homem de corpo magro, abatido pela alta glicemia, as têmporas a exibir fios grisalhos. Sim, eles sinalizavam que o tempo constrói e reconstrói.


Não me recordo de nossas primeiras palavras. Quem sabe, o silêncio tenha sido um interlocutor. Hoje, na velhice que te ampara, percebo: você está aqui, com suas manias e rabugices, certezas e dúvidas. Estamos aqui, enlaçados na circunstância, que ainda não se cansou de nós.

Nenhum comentário :

Postar um comentário