Por Flávia Marques
Úrsula
foi até a cozinha. Pouco depois, voltou com um prato farto de comida e uma
garrafa de água fresca.
– Eu
tinha acabado de fazer o almoço quando você chegou. Coma tranquilo, quando
terminar conversamos.
– Obrigado.
– Qual
é o seu nome, peão?
– Graciano,
seu servo.
– Vou
passar um café para acompanhar a prosa. Espere aqui.
O rapaz
bebeu primeiro a água, pois estava com a sede de um dia inteiro. Enquanto
comia, contava para Úrsula como entendia de plantações. Por ter trabalhado nas
mais diversas funções na lida da terra, em tantos lugares diferentes, conhecia
os climas e sabia o que se adaptava melhor a cada um deles. Combinaram que
Graciano ficaria ali para realizar as tarefas mais pesadas – e não falaram nada
sobre o tempo de permanência. Ambos possuíam almas livres e, se a um fosse
difícil se fixar em qualquer lugar, à outra, a menor indicação de cárcere
dava-lhe borbulhas no sangue.
Úrsula
percebeu, com o passar do tempo, que as coisas mudavam rapidamente em suas
terras. Primeiro a aridez e a infertilidade do solo deram lugar a um terreno
fértil, produto das chuvas constantes e equilibradas, raríssimas na região, e
do trabalho diligente do ajudante misterioso. Depois as galinhas começaram a
botar ovos quatro vezes ao dia. As vacas não paravam de esguichar leite pelas
tetas brilhantes de tão esticadas. Até Lilica, a cachorrinha, apareceu prenha;
apesar de Sherlock ter mais de vinte anos – uma idade avançada para qualquer
cachorro. Em um tempo absurdamente curto, pés de manga, jaca, banana e laranja apareceram
apinhados. Eram tantas as frutas, e reapareciam tão rápido, que não se podia
sentar um minuto no pequeno sítio. De tão fortes e macios, os aipins pulavam da
terra. As pessoas vinham de longe para comprá-los.
Graciano
não parava de trabalhar. Dormia tarde e acordava cedo. Além dos cuidados com a
terra e os animais, também comercializava os produtos na cidade com a velha
caminhonete que ele mesmo consertou. Quando voltava, preparava tudo para o dia
seguinte e ajudava Úrsula com os clientes que chegavam sem parar. À noite,
pessoas da redondeza vinham ouvir a viola do moço e, quando o frio baixava,
tomavam aguardente para aquecer o corpo. Úrsula gostava de cantar, com a voz
fraquinha, melodias castelhanas que lembravam sua infância. A alegria era tanta
que não viam o tempo passar. Não foram poucas as vezes que emendaram a noite de
festa num dia inteiro de trabalho pesado.
Aos
poucos Úrsula foi percebendo que o milagre da terra também alterava a ela
mesma. Um dia, ao acordar, teve a impressão de que sua pele parecia mais
esticada e viçosa – e apareceram fios castanhos nos cabelos. Notou que remoçava
lentamente: as coxas engrossaram e os olhos voltaram a enxergar sem a ajuda dos
óculos. Sua voz não mais tremia e, em seus braços, sentia a força da juventude.
Ao fim
de oito anos, acordou com a mesma idade de Graciano; ficando maravilhada com as
possibilidades que se descortinavam à sua frente. Não teve dúvidas de que
aquele fenômeno estivesse intimamente relacionado ao seu hóspede especial.
Levantou-se da cama e olhou pela janela. O sol ainda não havia saído. Todo o
sítio repousava em silêncio. Ao redor, tudo seguia o curso normal. Só dentro de
seus portões o sobrenatural tinha liberdade para acontecer. Debaixo das
mangueiras, enrolado dentro de uma rede, Graciano dormia como um inocente.
Úrsula jogou a manta de lã sobre os ombros e foi ao encontro do jovem. No
caminho, parou diante do espelho e contemplou mais uma vez seu reflexo
impressionante. Atravessou a porta da frente decidida: caminhou pela varanda
lateral, em direção ao pomar, e desceu as escadas; colocando-se ao lado do
moço. Graciano abriu os olhos e a rede, recebendo com um largo sorriso a mulher
que, pacientemente, aguardou até que ele estivesse pronto.
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