sábado, 16 de junho de 2012

A Madrilena - Parte 2 de 2

Por Flávia Marques


Úrsula foi até a cozinha. Pouco depois, voltou com um prato farto de comida e uma garrafa de água fresca.

– Eu tinha acabado de fazer o almoço quando você chegou. Coma tranquilo, quando terminar conversamos.
– Obrigado.
– Qual é o seu nome, peão?
– Graciano, seu servo.
– Vou passar um café para acompanhar a prosa. Espere aqui.

O rapaz bebeu primeiro a água, pois estava com a sede de um dia inteiro. Enquanto comia, contava para Úrsula como entendia de plantações. Por ter trabalhado nas mais diversas funções na lida da terra, em tantos lugares diferentes, conhecia os climas e sabia o que se adaptava melhor a cada um deles. Combinaram que Graciano ficaria ali para realizar as tarefas mais pesadas – e não falaram nada sobre o tempo de permanência. Ambos possuíam almas livres e, se a um fosse difícil se fixar em qualquer lugar, à outra, a menor indicação de cárcere dava-lhe borbulhas no sangue.

Úrsula percebeu, com o passar do tempo, que as coisas mudavam rapidamente em suas terras. Primeiro a aridez e a infertilidade do solo deram lugar a um terreno fértil, produto das chuvas constantes e equilibradas, raríssimas na região, e do trabalho diligente do ajudante misterioso. Depois as galinhas começaram a botar ovos quatro vezes ao dia. As vacas não paravam de esguichar leite pelas tetas brilhantes de tão esticadas. Até Lilica, a cachorrinha, apareceu prenha; apesar de Sherlock ter mais de vinte anos – uma idade avançada para qualquer cachorro. Em um tempo absurdamente curto, pés de manga, jaca, banana e laranja apareceram apinhados. Eram tantas as frutas, e reapareciam tão rápido, que não se podia sentar um minuto no pequeno sítio. De tão fortes e macios, os aipins pulavam da terra. As pessoas vinham de longe para comprá-los.

Graciano não parava de trabalhar. Dormia tarde e acordava cedo. Além dos cuidados com a terra e os animais, também comercializava os produtos na cidade com a velha caminhonete que ele mesmo consertou. Quando voltava, preparava tudo para o dia seguinte e ajudava Úrsula com os clientes que chegavam sem parar. À noite, pessoas da redondeza vinham ouvir a viola do moço e, quando o frio baixava, tomavam aguardente para aquecer o corpo. Úrsula gostava de cantar, com a voz fraquinha, melodias castelhanas que lembravam sua infância. A alegria era tanta que não viam o tempo passar. Não foram poucas as vezes que emendaram a noite de festa num dia inteiro de trabalho pesado.

Aos poucos Úrsula foi percebendo que o milagre da terra também alterava a ela mesma. Um dia, ao acordar, teve a impressão de que sua pele parecia mais esticada e viçosa – e apareceram fios castanhos nos cabelos. Notou que remoçava lentamente: as coxas engrossaram e os olhos voltaram a enxergar sem a ajuda dos óculos. Sua voz não mais tremia e, em seus braços, sentia a força da juventude.

Ao fim de oito anos, acordou com a mesma idade de Graciano; ficando maravilhada com as possibilidades que se descortinavam à sua frente. Não teve dúvidas de que aquele fenômeno estivesse intimamente relacionado ao seu hóspede especial. Levantou-se da cama e olhou pela janela. O sol ainda não havia saído. Todo o sítio repousava em silêncio. Ao redor, tudo seguia o curso normal. Só dentro de seus portões o sobrenatural tinha liberdade para acontecer. Debaixo das mangueiras, enrolado dentro de uma rede, Graciano dormia como um inocente. Úrsula jogou a manta de lã sobre os ombros e foi ao encontro do jovem. No caminho, parou diante do espelho e contemplou mais uma vez seu reflexo impressionante. Atravessou a porta da frente decidida: caminhou pela varanda lateral, em direção ao pomar, e desceu as escadas; colocando-se ao lado do moço. Graciano abriu os olhos e a rede, recebendo com um largo sorriso a mulher que, pacientemente, aguardou até que ele estivesse pronto.


Nenhum comentário :

Postar um comentário