terça-feira, 2 de agosto de 2011

ENTENDENDO O SOL

Por Denise Fernandes


Estava sentada no ônibus me sentindo vazia como uma casa sem móveis, desabitada, e pensando no que ia escrever para esse blog. Quando entrou uma senhora coreana, de cabelos grisalhos, arrumados em um coque desajeitado e vestindo-se de maneira completamente simples. Ela se posicionou no meio do ônibus e segurando o que parecia serem pacotes de biscoito ofereceu:

-Quem quer comprar? 3 por 50 centavos!
O tamanho da oferta já mostrou que se tratava de alguém “anormal” e provocou uma reação de mudança no ônibus. Depois ela continuou:
-Obrigada pelo motorista que ajuda coreana, ajuda estrangeira...
Depois dirigindo-se ao cobrador:
-Quer namorar comigo?
Ele riu e sorriu. Ela também sorriu. O cobrador olhou pra mim com um sorriso. Estava com um óculos espelhado e seu sorriso tinha que falar pelos olhos.
Ela se dirigiu então ao motorista.
- Quer namorar comigo?
Ele disse que não. Ela ofereceu os tais biscoitos a ele e ele recusou. Ela então se sentou e começou um diálogo com pouco nexo com uma senhora também sentada na parte da frente do ônibus. A senhora respondia com paciência. O ônibus era grande e nele cabia toda a loucura de todos os passageiros. Lá fora, o mundo pequeno, apertado, ignorava tudo que era verdadeiro e permanecia como uma paisagem. A realidade está além dessa paisagem, é a história que se organizou em loucura. Só a loucura explica a delicadeza humana.
Logo a senhora coreana chegou a seu destino e dirigindo-se ao motorista, agradecendo muito, perguntou de novo se ele queria namorar com ela. Ele riu e ela desceu, localizada.
O motorista comentou que ela vivia naquele pedaço. Às vezes, encontrava com ela na rua Muniz de Souza e ela estava sem roupas. O dia que ela estava “virada” segundo o motorista, ela tirava a roupa.
No parque do Ipiranga tem um homem jovem que caminha todos os dias quase o dia inteiro pelo parque; ele canta a pedidos ou espontaneamente a mesma melodia já fazem seis anos. Gosto dessa loucura que organiza a Vida, que dá sentido aos poucos sentidos que o real revela. Suspiro atrás das novidades na Cidade, ou, os ciclos da Beleza que se repetem. A luz do Sol na favela é mais bonita que nos bancos recheados de dinheiro e ar condicionado. A cor da Terra, as casas que surgiram no morro, como as plantas que surgiram espontâneas de sua própria força. Em tudo, há uma expectativa, um desejo novo a surgir, uma nova e antiga fome onde havia apenas o ar, o vento, uma promessa leve. Há novas árvores querendo brotar, há uma semente que chora, uma luz que permanece na treva mais oculta como sua origem e seu néctar. Há um sabor doce e salgado em tudo que é real; eu sei porque lambi a realidade e ela queima dentro de mim, como os órgãos de um anjo. O anjo me olha, eu o escuto. Somos a Esperança dentro da favela e não estamos sós. Todos que estão conosco se ressentem com a Saudade. Não há verdade dentro dessa Esperança: ela é como um pulsar, um inseto, um filhote de pássaro no ninho esperando alimento.
Estamos construindo uma nova realidade. Mas ela não é espessa, densa. Ela é essa vontade do Sol todo dia. E anda de ônibus, verdade-realidade escondida em todas as trilhas e trajetos. Da senhora coreana nasce parte da Luz na Cidade, do seu corpo, de suas perguntas corajosas, de seu discurso que rompe com a normalidade. Vamos pedir para a normalidade se esconder diante de Nós e dessa Esperança que esculpimos dentro de nós. A Esperança nascida não fala mas acredita, espera como um feto seu alimento sagrado, sua parte no Mundo.
Desço e subo do ônibus. Enquanto houver trilhas, haverá esse caminhar indeciso e perplexo. A solidão nos fará sempre humildes diante do Sol. Sim, senhora coreana, continue tirando sua roupa no meio da rua porque estamos refletindo sobre a singela pele dos humanos. Estamos ainda entendendo o Sol, se é Ele que revela a rua ou a mascara. Estamos no auge da dúvida de toda a Civilização. E é a sabedoria da pele que nos inaugura hoje e talvez amanhã, é ela que nos tem perdoado a dureza do asfalto e nossas saudades.

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