terça-feira, 19 de junho de 2018

Nice

Por Denise Fernandes




Falei pra ele: "Meu nome é Denise". Ele entendeu "Nice". Estava passando mal, com a pressão baixa, e parei no comércio (de água de coco gelada e açaí) em que ele trabalha. Não tinham máquina de cartão na época. Ele aceitou eu ficar devendo. Mesmo sendo uma desconhecida, ele cuidou de mim com carinho. O comércio fazia parte do meu trajeto diário e, quase sempre, ele me acenava: "Oi, Nice". Assim, eu e o Ronaldo começamos nossa amizade de anos.

Agora o estabelecimento já aceita cartão, como todos nós  sujeitos à ciranda financeira de exploração e taxas. Um dia desses, fui tomar uma água de coco lá. Estávamos a sós. Ele sentou perto de mim e falou sobre Noé e Jesus. Fez um verdadeiro discurso bíblico. Depois falou sobre os cinco filhos dele. Comentei que meu irmão havia morrido o ano passado, vítima de um câncer no cérebro. O Ronaldo disse que notou a minha energia um pouco baixa. "Como assim?", pensei. Andava eu cabisbaixa pela rua? Sorria menos? Fiquei surpresa.

Ronaldo me aconselhou a meditar. Disse que vinte minutos seriam suficientes. Eu podia escolher meditar no parque, no meu quarto. Disse que ele mesmo meditava, que era importante.

Cada vez que fecho os olhos para meditar, me lembro do meu irmão, dos meus familiares queridos e do Ronaldo. Imagino ele me observando passar, e vendo minha energia baixar. O que ele viu? A lágrima escondida? O grito que ainda não dei? Quando meu irmão morreu, não chorei... Eu gritei. Gritei muito. Gritei além de Deus. Bati com as mãos no chão, e gritei.

Muitas vezes, quando medito, cai uma pequena lágrima. Uma lágrima que tem vergonha de chorar. Talvez, se tivesse chorado na hora da perda, minha energia não estivesse tão baixa. De vez em quando apareço lá, para ouvir o Ronaldo filosofar (e me chamar de Nice).

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