Por Fátima Mohamad El Kadri
Chegou de
madrugada, louco por umas boas horas de sono. Como de costume, atravessa o
extenso corredor que leva ao seu quarto, quando algo além dos próprios passos
quebrou o silêncio. Apurou os ouvidos. Pareciam gemidos roucos, sussurrados,
pérfidos. Estancou durante segundos infinitos. Pensou na vida. Em tudo o
que era e o que tinha: no conforto daquela cama, e nos braços daquela mulher
que o esperava há anos. Visualizou seu sorriso de carinho. O cheiro, o olhar
sereno, a pele macia e branca que ficava ao seu alcance, e que ele tocava de
vez em quando, com certo tédio. Os lábios rosados e suculentos, aguardando o
beijo que nem sempre vinha. De repente, parou de pensar e as pernas voltaram a
andar bem devagar, esperando que os ruídos cessassem. E começou a sentir um
torpor, como se o corpo se desmaterializasse e somente o espírito vagasse. Ou
como se a alma estivesse evaporando, à medida que a porta do quarto se
aproximava e os ruídos aumentavam de volume e intensidade.
Talvez fosse
melhor bater, pensou, antes de perceber que a porta estava entreaberta. Apenas
um leve empurrão e o tormento estaria acabado. Mas os gemidos, agora, ecoavam
nas paredes. Um vento forte escancarou a porta, não revelando nada além da
escuridão. Assim seguiu, com um passo ainda mais lento, aproximando-se daquele
som aterrorizante. Como lhe faltou coragem para acender as luzes, imaginou a
foice com o sangue, e a morte do traidor estampada nos lençóis brancos de linho,
que ela adora. Seria incapaz de lhe fazer mal, pois reconhecia o quanto ela fora
boa até então, porém, estava decidido a montar a cena do crime. Ela seria considerada
culpada pela morte daquele desconhecido que tanto o humilhava.
Tateou no
escuro, sentindo os lençóis e, sobre eles, o corpo quente que se contorcia.
Agora só se ouviam as respirações – exaustas dela, e tensas dele. Reconheceu a
pele macia e branca que tocava, às vezes, ao se deitar. Mas, antes que pudesse
fazer qualquer movimento brusco, pôde ouvi-la sorrindo e lhe estendendo os
braços que continuavam a esperá-lo. Repousou a cabeça sobre seus seios redondos
e o peito arfante. Ele não pôde conter as lágrimas. Tinha acabado de adquirir a
certeza que todos os maridos gostariam de ter: sua mulher não era adúltera.
Era, sim, livre! A boca permaneceu calada, mas não o corpo. Mandou o sono
bater em outra porta, e cobriu-a com a manta do seu desejo guardado.
Nascida em 1984 em São José dos Campos, hoje vive em Santo André. Já publicou textos e poemas em diversas coletâneas e sites, como o do Projeto Releituras. Em 2011, publicou a crônica “Recomendações de uma amiga” na coletânea Crônico! Crônicas Brasileiras Ilustradas, pela editora Multifoco. É uma apaixonada pelas palavras e pelas possibilidades que elas lhe dão.
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