Por Flávia Marques
Amora Cantuária foi professora de matemática da escola de Normalistas durante quase quarenta anos. Não sabia fazer outra coisa e seu trabalho tinha sido sua segunda paixão. A primeira se chamava Coronel Amaral. Conheceu o Coronel numa viagem de barco que fez com a mãe quando ainda era uma estudante. Ela voltava de uma visita às primas de um vilarejo vizinho, e ele era um senhor de porte altivo e bigodes impecavelmente arrumados. O Coronel comemorava Bodas de Prata e, além dele e da esposa, estavam os oito filhos e três filhas, noras e netos. Amora bem que tentou desviar seus olhinhos de louva-deus daquele homem de mãos de urso e voz de trovão, mas ficou hipnotizada pelo azul marítimo de seus olhos e o sorriso musical que lhe dirigia; que não pôde resistir. Dois dias depois que desembarcaram, recebeu flores e um convite para passear a cavalo pelas Terras Esquecidas, um lugar ao sul, onde só homens corajosos se arriscavam a cavalgar porque havia uma lenda que dizia que as pessoas que chegassem àquelas terras com algum desejo de vingança no coração, perdiam completamente a memória, se esquecendo, inclusive, de se defender da morte, e não retornando jamais.
Amora Cantuária confiou na fama de homem valente que o Coronel ganhou durante anos de guerras e perdas. Não podia imaginar lugar mais seguro que entre seus braços. Encontraram-se debaixo do Carvalho do Limite – que tinha esse nome porque marcava o limite entre a cidade e as Terras Esquecidas – e cavalgaram durante uma hora, conversando sobre a vida e como ela os levou até ali. Amora levava, pendurada em seu bracinho, uma cesta com frutas e doces que preparou de manhã para a hora do lanche. Desceu de seu cavalo e estendeu, debaixo de uma árvore antiga e frondosa, uma toalha de linho bordada de passarinhos e versos que ela mesma fizera. Antes que distribuísse os alimentos sobre a toalha, o Coronel se colocou de pé às suas costas e declarou:
– Só há uma fruta que desejo agora.
Aproximou-se da pele morena da menina, e beijou sua nuca – seus lábios macios e quentes – e Amora deixou escapar um gemido de agonia porque pensou:
– É hoje que morro e sou toda pecado!
Surpreendeu-se ao perceber, porém, que, ao invés de morrer, tirou a roupa com a certeza de que estava diante de sua mais difícil escolha, deitou-se na toalha e, antes que pudesse tirar as botinhas, o Coronel a impediu, dizendo que gostava mais assim. E ali, entre passarinhos e versinhos bordados, deu ao único homem de sua vida sua mais valiosa virtude, guardada com tanto cuidado para o casamento que jamais faria. Foi assim durante os primeiros anos até que a mãe de Amora morresse e a deixasse sozinha, na pequena casa de tijolos vermelhos, no fim da Rua dos Escravos. O Coronel passou a visitá-la esporadicamente, sem jamais perder as emoções do primeiro encontro. Aos poucos, desenvolveram uma forte amizade que, somada ao desejo que os unia, se aproximava muito do amor verdadeiro. Amora escutava as reclamações do Coronel com a paciência de quem seria recompensada no fim. O Coronel se desdobrava em agradá-la, pois o angustiava a ideia de que pudesse faltar algo à amante quando ele já a privava de tanto.
Os anos se passaram e ela o acompanhou, resignada e agradecida, dividindo-se entre suas duas paixões com tanto empenho que mal percebeu a velhice chegando, os cabelos embranquecendo e os dentes folgando na boca. Quando completou setenta anos, aposentou-se a contragosto, e sentiu pela primeira vez o peso da idade. Viu a casa vazia e desejou ter filhos e netos, mas era tarde demais. Recebia visitas, é verdade: suas ex- alunas com seus filhinhos vinham tomar chá com biscoitos à tarde e contavam para a velha professora a felicidade de ser mãe e dona de casa; sem perceber o quanto isso poderia feri-la. Amora escutava de olhinhos quase fechados, imaginando-se no papel de cada uma delas, e sabia disfarçar tão bem suas tristezas que nunca perceberam uma lágrima solitária deslizar pelo canto de seu olho esquerdo e sumir antes de tocar o chão. O Coronel ainda a visitava para comer bolinhos de chuva e tomar refresco de carambola, sentados debaixo do Carvalho do Limite, que ele mandou transplantar para o quintal da amante quando abandonaram o costume de desafiar a morte nas Terras Esquecidas. Relembravam o passado e riam a valer das loucuras que fizeram para passar alguns instantes saboreando o gosto um do outro, mapeando seus corpos, e fazendo planos de viagens arriscadas e aventureiras que o Coronel jurava que fizeram mesmo, porque tinha uma profunda convicção de que realizamos tudo o que imaginamos, só que num plano diferente.
Era um homem forte, a quem os anos pintaram os cabelos de branco sem, contudo, enfraquecer os ossos ou enrugar sua pele. Mantinha o mesmo sorriso de rapaz, e o mesmo magnetismo nos olhos, com os quais matou de medo uma sucuri num dos dias que passou perdido na Floresta Descomunal. O próprio menino que o acompanhou ficou mudo por três anos, e teve que carregar um bloquinho e um lápis para onde quer que fosse a fim de contar essa e outras histórias para os moradores de Cabiceira.
Uma das histórias mais engraçadas que o Coronel protagonizou, foi no dia que a cidade completou 150 anos. Os jornalistas resolveram entrevistar os moradores mais antigos e Procópio Azira, da Gazeta Cabiceirense, foi designado para o Coronel:
– Coronel, o senhor poderia nos dizer a receita para a longevidade?
– Gemada pela manhã e escorpiões fritos sempre que tiver vontade – respondeu, com a malícia de quem queria perpetuar uma lenda. – Mas nada disso adianta se você dormir de olhos fechados. Eu nunca fecho os meus.
Isso era bem verdade. Da primeira vez que Amora viu o Coronel dormindo, ficou tão assustada que foi chorar na cozinha, certa de que o homem tinha morrido em sua cama. Depois se acostumou, porque não há nada que a mulher não suporte. Em Cabiceira do Rio Seco, quando os homens espantam e desmaiam pelo caminho, chamam uma mulher para continuar por eles.
No dia da inauguração do cinema, Gertrudes, a moça que ajudava Amora com os serviços de casa, pediu folga de tarde para ir à praça com o namorado ver o movimento das famílias tradicionais da região na festa em homenagem à data histórica. Amora concedeu a folga à menina, com a promessa desta de trazer biscoitinhos de polvilho quando voltasse para casa. Gertrudes sentou com Manoelito e viu quando a comitiva do Coronel Amaral passou, mais festejada que a do prefeito. As crianças seguravam algodões doces, e as moças vinham em vestidos de domingo com flores nos decotes. O Coronel Amaral veio em terno de linho branco e cheiro de lavanda, de braço dado com a esposa sorridente e afetada. Também compareceram o Prefeito, o Vereador, o Delegado e dona Sinhá Moça, a única sobrevivente da família Córtez.
Às duas da manhã, quando a música sacudia os vidros das janelas, um menino descalço chegou esbaforido, mandado pelo doutor Cunha, e entregou um recado ao senhor Prefeito. Este, em tom de lamento, anunciou que dona Amora Cristina Guilhermina da Cantuária tinha acabado de falecer, vítima de um ataque fulminante do coração.
Ao ouvir essas palavras, Gertrudes correu em desespero pelas ruas gritando que não poderia ser verdade. O Coronel desmoronou na cadeira mais próxima. Até sua esposa ficou branca como cera com pena da dor do marido – e triste por perder aquela que a ajudara a suportar aquele homem por tantos anos. As mocinhas tiraram seus lenços das bolsas e começaram a chorar. A festa acabou e os convidados foram para suas casas colocar o luto e continuar a reunião na Capela da Santa Casa de Misericórdia.
O dia amanheceu escuro, e choveu por duas semanas, durante as quais, o Coronel só colocou água no estômago. Em sua dor, lembrou de todos os anos que passou ao lado da morena de olhos de louva-deus, tão pequena e delicada que ele pensou que partiria ao meio quando a teve pela primeira vez, e do seu cheiro adocicado de manga, e dos cabelos castanhos que iam até os joelhos em caracóis. E que ela estendia como um tapete sobre as costas quando se deitava de bruços, para que ele os pusesse de lado e beijasse seus quadris antes de virá-la e enchê-la de beijos, causando-lhe arrepios enquanto ela dizia:
– É hoje que morro e sou toda pecado...
No décimo quinto dia de jejum, o Coronel levantou de sua cadeira, tomou banho, aparou a barba, perfumou-se com a colônia mais cara, montou em seu cavalo e partiu. Os que o viram pela última vez, juram que ele entrou nas Terras Esquecidas. E aos que o alertaram de perigo, ele falou:
– Tenho mesmo contas a acertar.
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