terça-feira, 9 de julho de 2019

Memórias de um cão

Por Maurício Perez



Um belo dia, quando ainda era um recém-nascido, fui afastado da minha mãe e dos meus quatro irmãos. Essa marca nunca saiu de mim. Levaram-me para uma loja, onde fui vendido. Sim, vendido a uma família de humanos.


Não tive chance de escolher os meus novos 'donos'. Tive que aguentar tudo o que um cão deve sofrer nesses lares; onde se 'ama' um cachorro.


Sou um cachorro de raça e virei um objeto de fascinação naquela casa. Todos me faziam festa, me enchiam de biscoitos e cuidados. Mas isso tinha um preço a pagar.


Primeiro, foi a insistência de ter que fazer tudo o que me pediam. Tinha que ir de um lado para o outro, rolar, deitar, lamber, correr atrás de um pedaço de madeira e fingir que estava contente. Sim, eu temia que, se não respondesse bem, os meus donos se desanimariam e me jogariam na rua. Pelo menos foi o que aconteceu com a tartaruga que eles tinham... Mas desconfio que talvez não valha a pena ser tão puxa-saco dos meus donos, afinal, o gato consegue ser muito mais independente, come do bom e do melhor e anda por onde quer. Outro dia, um deles me disse que não entendia o comportamento dos cães: "Como vocês ficam obedecendo assim? Você não tem um mínimo de orgulho? De personalidade?".


Por falar em andar solto, um dos maiores tormentos eram os passeios e a coleira. Não me deixavam nem cheirar uma árvore. Era só puxa para cá, puxa para lá... Tenho o pescoço cheio de hematomas (que os meus pelos cobrem com dignidade). Quase sufoquei uma vez. E tinha que sair quando eles queriam, pelo tempo que queriam, aonde queriam. Como eu ficava calado e não podia reclamar, eles me achavam o máximo. Algumas vezes, tinha vontade de dar um passeio, mas eles não queriam. Isso acontecia, especialmente, em dia de jogo de futebol.


Pior é quando Antonio, o filho do meu dono, me pegava para andar de skate com ele. Cara, não aguentava aquela correria! O moleque não parava e ainda achava que eu estava adorando; porque estava com a língua para fora. Já a filha do dono, a Ana, tinha as suas manias de me vestir. Você tem ideia do que é para um cão ter que usar uma camisa, um boné e um óculos? Tem uma vizinha minha, uma poodle, que, coitada, tinha que aguentar poda e unha pintada. Há um pitbull na nossa rua que não para de zoar com a gente.


Por falar em cadelas, certa vez eu encontrei uma cadela linda, que estava no cio. Avancei com tudo, mas o diabo da coleira me deixou afônico por cinco dias! Mais tarde, naquele dia, fiquei desesperado: ouvi meu dono falar em me castrar. O que é isso? Fiquei aflito pensando em um plano que me salvasse: podia aproveitar o passeio da manhã, morder as bolas dele e sair correndo; podia me jogar debaixo de um carro... Foi uma semana muito difícil e só fiquei mais tranquilo quando eles descobriram o preço que o veterinário queria cobrar para fazer a castração. Acharam melhor me dar mais uma chance.


Quando viajavam de férias, eles me deixavam num hotel de cães, com lágrimas nos olhos, dizendo que me amavam muito. Na verdade, era eu que tirava férias e conseguia estar em paz com outros cães.


O tempo foi passando e fui ficando velho. Primeiro, perdi uma visão e, depois, comecei a ter um problema no fígado. Eu já não conseguia correr muito e os filhos do dono me deixaram mais à vontade. Até que um dia, ouvi o famoso papo: "Ele é tão bonzinho e sofre tanto. Não seria melhor sacrificá-lo, para o bem dele mesmo?".


Ah, negão! Nesse dia, eu tomei a melhor decisão da minha vida. Nessa altura, confiavam em mim e me permitiam andar com eles na rua, sem coleira. Aproveitei a deixa e dei a maior corrida da minha vida. Corri muito e só parei quando entrei numa favela. Cansado, velho, mas vivo.


Hoje sou feliz, apesar de ser um cachorro abandonado, sujo e com sarna. Moro na rua com meus colegas. Tem um catador de papel que me arranja comida e me deixa em paz. Ando por onde eu quero e sou plenamente cachorro. Meus donos diziam que era preciso defender o direito dos animais. Direito de quem, cara pálida?

É autor do blog Correio Chegou.

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