terça-feira, 18 de julho de 2017

Vidro sujo

Por Denise Fernandes




Aves que ressurgem enquanto espero a primavera. Chuva fina no inverno, atiçando fogo sem fim. Vou dizer não aos deuses, me encolher como uma pedra, enquanto respiro destino e exatidão. Vou dizer sim aos deuses, me tornar uma poeira presente em toda estação, enquanto inspiro sombras e azul.

Mas não sinto vontade de limpar o vidro que está sujo. Agora me perguntei porque os vidros precisam ficar limpinhos, qual a importância do vidro limpo. Do lado de dentro, nunca vejo bem mesmo o lado de fora. Rodeada por ilusões, por que limpar o vidro sujo? Pior ainda seria, nesse momento, chamar alguém para limpar a merda do vidro. Desculpa vidro, sem querer ofender sua falta de alma, já amando sua proteção contra o frio, mas não dá para entender porque preciso passar a tarde esfregando o vidro que se sujou.

O noticiário fala com sua voz robótica, alguém morreu, alguém morreu, já não escuto bem o noticiário porque sei que ele fala sempre a mesma morte: a morte violenta, a morte estúpida, a morte assustadora, a morte morte. Então, fico aqui, televisão ligada, olhando a sujeira do vidro, ouvindo o turbilhão de pensamentos da minha cabeça, esperando um outro tipo de morte. A morte invisível que não sai na televisão.

Quero viver mais de ar, do que de vidros. A mão inerte não quer se ralar na limpeza. Penso agora em ler esse vidro perturbador, sujinho. Então, escuto um mar dentro de mim. E uma avalanche de questionamentos: pra quê passar batom, pra quê cortar o cabelo, pra quê tentar organizar o que é coisa e espelho, pra quê tanta coisa, se só no meu corpo mora o sentido e a razão para tudo que existe.

A paixão de Clarice Lispector encontrou uma barata olhando a sua personagem, e eu encontrei esse vidro sujo no meio da minha vida. Se uma barata passasse pelo vidro, talvez eu tivesse algum ânimo para limpá-lo.

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