sábado, 1 de julho de 2017

Por esta eu não esperava

Por Meriam Lazaro




Minha querida amiga, imagine você, que se imortalizou menina, vendo o que eu vejo agora, mais de sessenta anos depois. Se você acordasse de repente, pensaria ainda estar no anexo da casa do esconderijo, com balas zunindo sobre a cabeça e um bombardeio lá fora.


Os homens continuam bestiais, com a diferença de que atingem milhares de vidas num apertar de botão e, sempre indiferentes, assistem a tudo com outro apertar de botão pela telinha. Os motivos são os mesmos, ou seja, nenhum motivo especial. Apenas o desejo de serem imortais. Coisa que o universo todo sabe não ser bem assim, mas eles não aprendem.


Mas o que eu não esperava era sentir saudades suas. Você sabe que o silêncio é o que me dá significado, e que eu não gosto que sintam saudades minhas. Mas, sem esperar, atravessei sozinha o que restou do século, colhi da história muitas páginas feias, que com o seu toque foram passadas a limpo com a pureza e o frescor da esperança.


Você disse uma vez que a esperança é perigosa. Eu confirmo, minha amiga, é por demais traiçoeira também. Quando menos esperamos nos tiram o chão sob os pés. Com uma só cajadada matam o coelhinho da páscoa, o papai Noel, nosso irmão e a vizinha. Não sobra muito. Mas isto também passa, afinal, temos que nos agarrar a um rascunho qualquer de paraíso e, nesta arte da vida, além de arrumar a cama pela manhã, nada melhor do que manter a chama da esperança. Faço isto observando as tulipas, belas e coloridas, imoladas ao sol.


Não sei se foi mais acertado permanecer na meninice como você, com sua carinha de anjo e ar de travessura ou, se como eu, seguir em frente. Envelheci no corpo, sem que reconheça qualquer sinal de cansaço na imaginação. Sempre amiga dos livros que eram meus amigos, da observação do comportamento dos que me cercam, desisti mil vezes de melhorar o que só os outros enxergam de seu em mim. Não que não tenha polido uma aresta aqui e ali.


Outra hora lhe contarei do progresso do mundo. Dos fogos de artifício, do trem bala, de como não há mais cartas com selo e cheiro distantes, da artificialidade que ouço nas rádios. Foi ouvindo rádio, precioso objeto que nos conectava ao lá fora, que tive a ideia de escrever esta carta para você. Minha querida Anne Frank, por esta eu não esperava, mas a saudade é tanta...


Sua Kitty.

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