sexta-feira, 6 de novembro de 2015

O personagem

Por Mayanna Velame




Noite fria, muito fria. Acendo um cigarro para aquecer a alma. Sinto-me consumido pela fumaça que sai da boca.


Confesso que não tenho medo de morrer, e nem de encontrar no meu caminho Deus ou o diabo. Não quero nenhum deles; embora o paraíso pareça bem mais interessante que o inferno. Na verdade, sou apenas um personagem afastado de seu criador. Ele já não sabe o que fazer comigo, em qual conto devo estar. Lembro-me que o autor até tentou me transformar no protagonista de um romance chamado... Agora não lembro o título da história.


Também já não me importo, pois tudo que sei é que realmente estou caminhando pelas ruas escuras. Sem cachorros, sem polícia, sem putas, sem pedras para chutar com a ponta do sapato.


Continuo a caminhada. Sinto os músculos fadigados. Tento repousar meu corpo num banco de praça. Estou sozinho, literalmente sozinho.


O cigarro no canto da boca. Trago duas vezes, e náuseas visitam meu organismo. Sou um personagem fracassado. Meu criador não me quer. Permanecerei perdido por toda a eternidade – como um náufrago numa ilha deserta.


Tudo que enxergo é apenas escuridão. Lentamente, ela vai sendo extinta por uma claridade amarela, que se aproxima com ímpeto de meu corpo. Confuso, levanto-me, esfrego os olhos com os dedos. Não acredito naquilo que vejo. Um gato de feição arrogante (envolvido numa luz agora esverdeada) range os dentes e pula contra meu peito.


– Quem é você? – pergunto, estupefato.


– Sou Leôncio. O personagem mais querido deste autor. Tenho um recado para você.


– Diga logo!


– Você não vai ser personagem algum. Ficarás vagando de página em página, e não encontrarás qualquer história feita exclusivamente para você.


– Não! – grito, atordoado, arremessando o gato no ar.


Em seguida, uma dor me faz desmaiar. Subitamente, encontro-me em um túnel. Pareço viajar no tempo. Meu corpo sente um peso estranho nos ossos. Não entendo o que está acontecendo. Será que morrerei? Não, não me deixe perecer assim! Ainda quero tragar o último cigarro e preciso participar de um derradeiro conto ou romance.


Então, vejo a turba. Meu traje é estranho: um terno e um chapéu. Pretos. Não sei exatamente onde estou. Ando devagar, peço licença para as pessoas que cruzo no caminho. Porém, elas parecem não me entender. Falam em outra língua. Acho que é castelhano. Escuto o som de sirenes. Guardas de trânsito afastam os curiosos, que rodeiam um corpo. Sim, parece que um homem foi atropelado. Ele agoniza no chão. Seus olhos opacos tentam iluminar a minha solitude. Sorrio para ele. É tarde demais, está morrendo. Choro, tentando não acreditar na morte deste cidadão.


Mas sei que ele está bem melhor que eu. Porque vejo que estou desamparado. E totalmente contrito nas ruas de Buenos Aires.

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