Por Amilcar Neves*
Há muitos
anos, quando o Córrego Grande era verdadeiramente nativo e manezinho,
contaminado que anda agora pela praga de edifícios, construídos cada vez mais
altos e mais próximos entre si e obrigando ao escoamento (?) de multidões de
gente pelas mesmas ruas estreitas de meados do século passado, quando o Córrego
Grande falava com inequívoco sotaque açoriano (não, não era sotaque, era o
idioma da cidade e da Ilha toda, hoje é que se fala com sotaque por aqui tudo),
naquele tempo a Maria Alice saiu para comprar na agropecuária do bairro, a qual
também vendia materiais elétricos e hidráulicos, um quilo de grãos para
alimentar passarinhos errantes que não semeiam nem colhem.
- Parrua?
- o vendedor pedia melhores especificações do produto pretendido.
- Parrua?
Não sei... - a garota não sabia mesmo, achava que se tratava de uma marca.
- É
parrua? - e o moço fez-se mais explícito: - É pra passarinho de rua?
Era. Era
para colocar nas gaiolas com grades parcialmente removidas, permitindo a
entrada e saída livre das aves vagabundas. Alguém um dia comentou:
- Que
pena que as gaiolas estão estragadas! Já pensaste? Podias ter passarinhos só
para ti!
Para
evitar esse tipo de comiseração, e mesmo porque as gaiolas de bambu foram se
deteriorando com o uso, acabei adotando comedouros apenas cobertos, feitos de
MDF, esse derivado da madeira tão em uso pelos marceneiros.
Ninguém
imagina o tamanho do apetite dessa gente. Passarinho come pra burro. E é povo
exigente, reclama se falta comida, faz greve se o prato está vazio, não canta
nem aparece mais. Na abundância, começam ariscos e depois se acostumam com os
humanos, com seus grunhidos desafinados e sua movimentação apressada. Nem se
abalam mais, depois de um certo tempo, após adquirirem confiança e perceberem
que sua vida e sua liberdade pouca ameaça sofrem. Passarinho é bicho esperto e
sagaz. Consome parrua e semente de girassol aos montões.
A parrua
da loja do bairro, que ainda hoje me fornece a alimentação para esses seres
alados (que não são anjos, bem entendido), serve muito bem a pombas-rola,
sabiás, pardais (sempre escorraçados, contentam-se em comer no chão as sobras
que caem da plataforma do banquete aéreo), corruíras e, especialmente,
canários, que vivem aninhando-se e procriando por ali (suponho que também
concebam pelas redondezas da minha churrasqueira, mas ainda não consegui-lo
flagrá-los no ato).
Dalton Trevisan
fala de canários em Orgias do Minotauro. Escreve a respeito o contista
paranaense: "Já viu canarinha branca se banhando de penas arrepiadas na
tigela florida?"
Mas as
minhas preferidas, indubitavelmente, as aves mais simpáticas e graciosas, bem
como as mais joviais e barulhentas, nunca sozinhas, vindo sempre aos bandos
(ontem contei sete delas, conta de mentiroso, num mesmo comedouro), para quem
lhes reservo doses generosas de sementes pequenas de girassol, são as verdes e
ágeis tirivas. Sobre elas ensina Júlio Ribeiro, em seu amaldiçoado e
escandaloso romance A Carne:
"- Quantas espécies temos de papagaios?
"- Ao certo, que eu saiba, seis: tuins, periquitos, cuiús,
sabiacis, que são estes, baitacas e papagaios propriamente ditos.
"- E de arás?
"- Quatro: tirivas, araguaris, maracanãs e araras."
De minha parte, até já contratei uma amiga minha, fonoaudióloga: a falar de passarinho,
confesso, prefiro falar com passarinho. Muito dela espero no tocante a essa
almejada proficiência.
*
Crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 15.01.14
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