quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Falar de passarinho

Por Amilcar Neves* 

 

Há muitos anos, quando o Córrego Grande era verdadeiramente nativo e manezinho, contaminado que anda agora pela praga de edifícios, construídos cada vez mais altos e mais próximos entre si e obrigando ao escoamento (?) de multidões de gente pelas mesmas ruas estreitas de meados do século passado, quando o Córrego Grande falava com inequívoco sotaque açoriano (não, não era sotaque, era o idioma da cidade e da Ilha toda, hoje é que se fala com sotaque por aqui tudo), naquele tempo a Maria Alice saiu para comprar na agropecuária do bairro, a qual também vendia materiais elétricos e hidráulicos, um quilo de grãos para alimentar passarinhos errantes que não semeiam nem colhem.

- Parrua? - o vendedor pedia melhores especificações do produto pretendido.

- Parrua? Não sei... - a garota não sabia mesmo, achava que se tratava de uma marca.

- É parrua? - e o moço fez-se mais explícito: - É pra passarinho de rua?

Era. Era para colocar nas gaiolas com grades parcialmente removidas, permitindo a entrada e saída livre das aves vagabundas. Alguém um dia comentou:

- Que pena que as gaiolas estão estragadas! Já pensaste? Podias ter passarinhos só para ti!

Para evitar esse tipo de comiseração, e mesmo porque as gaiolas de bambu foram se deteriorando com o uso, acabei adotando comedouros apenas cobertos, feitos de MDF, esse derivado da madeira tão em uso pelos marceneiros.

Ninguém imagina o tamanho do apetite dessa gente. Passarinho come pra burro. E é povo exigente, reclama se falta comida, faz greve se o prato está vazio, não canta nem aparece mais. Na abundância, começam ariscos e depois se acostumam com os humanos, com seus grunhidos desafinados e sua movimentação apressada. Nem se abalam mais, depois de um certo tempo, após adquirirem confiança e perceberem que sua vida e sua liberdade pouca ameaça sofrem. Passarinho é bicho esperto e sagaz. Consome parrua e semente de girassol aos montões.

A parrua da loja do bairro, que ainda hoje me fornece a alimentação para esses seres alados (que não são anjos, bem entendido), serve muito bem a pombas-rola, sabiás, pardais (sempre escorraçados, contentam-se em comer no chão as sobras que caem da plataforma do banquete aéreo), corruíras e, especialmente, canários, que vivem aninhando-se e procriando por ali (suponho que também concebam pelas redondezas da minha churrasqueira, mas ainda não consegui-lo flagrá-los no ato).

Dalton Trevisan fala de canários em Orgias do Minotauro. Escreve a respeito o contista paranaense: "Já viu canarinha branca se banhando de penas arrepiadas na tigela florida?"

Mas as minhas preferidas, indubitavelmente, as aves mais simpáticas e graciosas, bem como as mais joviais e barulhentas, nunca sozinhas, vindo sempre aos bandos (ontem contei sete delas, conta de mentiroso, num mesmo comedouro), para quem lhes reservo doses generosas de sementes pequenas de girassol, são as verdes e ágeis tirivas. Sobre elas ensina Júlio Ribeiro, em seu amaldiçoado e escandaloso romance A Carne:

"- Quantas espécies temos de papagaios?

"- Ao certo, que eu saiba, seis: tuins, periquitos, cuiús, sabiacis, que são estes, baitacas e papagaios propriamente ditos.

"- E de arás?

"- Quatro: tirivas, araguaris, maracanãs e araras."

De minha parte, até já contratei uma amiga minha, fonoaudióloga: a falar de passarinho, confesso, prefiro falar com passarinho. Muito dela espero no tocante a essa almejada proficiência.

* Crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 15.01.14

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