Foi olhando nossas fotos que percebi claramente que fui mais feliz do que parecia que eu tinha sido e essa nova conclusão é a razão de minha renovada alegria nessa primavera onde há menos flores, o ar está mais poluído e a beleza rarefeita em pessoas carregadas de artefatos que nada dizem. Como conseguimos? Aí as fotos vão revelando os segredos do que é memória, instante e ar, experiência, real e irreal plasmados na mesma matéria. Nossa história fluida de jabuticabeira carregada de jabuticaba. Eu barriguda sentada no chão. A Mig e o Acácio trazendo jabuticaba prá mim. A gente se empapuçando de jabuticaba. A gente deitado no chão, olhando as estrelas. A gente rindo à toa. A Mig limpando a pedra da cachoeira, do seu limo verde, com uma escovinha prá eu barriguda e a Julia pequenina não escorregarmos. O som da água. O misterioso e profundo som da água da cachoeira. O cheiro da terra. A doce força da terra. No fim, gostaria de ser abençoada pela terra, como gostaria.
Em uma das fotos um dos segredos: você empresta sua parte de cima do biquíni para a Júlia. Essa felicidade que escancara tantas possibilidades impõe atitudes, encontros, multiplicações. O biquíni é seu e é da Júlia, ele se dividiu, criou-se de uma outra forma a partir da atitude. É nossa versão da multiplicação dos pães no setor de biquínis.
E tem as lembranças que as fotos não revelam, mas que vieram junto com elas. Nós deitados na grama olhando as estrelas em Itapeva. Tantas estrelas. Carregávamos a babá eletrônica. Tinha então o som da respiração da Júlia, as estrelas, nossas risadas. Adoro rir à toa. Segundo uma senhora tola que conheci, rir muito dava azar. As lágrimas viriam em proporção ao riso. Mas só quem não ri é que pensa que o Riso é oposto à Lágrima. O Riso é irmão da Lágrima, filhos de Estar Aqui e Viver Aqui. Azar é encontrar uma senhora tola quando a gente está rindo de bobeira.
Lembro de umas outras risadas: eu e meus irmãos brincando de cócegas. A memória é um túnel onde a gente penetra e chega em diferentes estações. Porque marcaram, porque ali o livro da história construiu uma cavidade de luz e algumas cenas parecem mais claras que outras no curso do tempo.
Estamos no ápice. Se eu não sair daqui, logo virá o beija-flor beijar a flor amarela. Lentamente a humanidade se revolta com toda a violência. Há Jesus, Maomé e uma legião de Budas. Há um mistério no amor e em toda primavera.
Mesmo quando morre um pássaro azul bem pequeno e a gente tem dó, há uma procura por toda semente. Há um aguardar a água da fonte sabendo que ela vem. O bom de ser pequeno é estar aqui.
Não há confusão. É outubro e no hemisfério sul é primavera. A vida pode ser mais simples do que é, tão simples que é exata em sua complexidade. Morreremos?
O beija-flor risca o céu e passa aqui prá lembrar que é de verdade.
A humanidade se curva diante de seu próximo passo escuro. Ando na rua com medo. Mesmo assim, arrisco comer uma amora singela que na Cidade resiste. Precisamos de mais pés de fruta. É tão urgente e simples.
Há no canto uma energia que nos traduz. Só começo a me escutar ouvindo fora o som que há em mim. Então, existe a possibilidade remota que se encerre o tiro na arma, que a mão preparada para o soco enfim relaxe. E dessa possibilidade remota nasce a cor que tinge todas as palavras e tentativas. Por isso escrevo: essa oportunidade abre a tarde, me abre para ti e isso, o momento, é mais sublime que o resto.
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