terça-feira, 24 de abril de 2018

Berço de ferro

Por Denise Fernandes




Na baixada do Glicério, na cidade de São Paulo, inúmeros moradores de rua ocupam as áreas públicas e a região debaixo dos viadutos. Muitas pessoas evitam passar ali, mesmo de carro. Porque sentem medo, porque não querem ver. "Medo do quê?", perguntei para uma medrosa. "Tenho medo do que eles possam fazer".

As pessoas na rua estão geralmente ocupadas. Tendas formadas com roupas, cobertores, madeiras e pedaços de móveis requerem manutenção constante. Fecha daqui, estica dali. O chão duro, coberto de papelão, serve de colchão.

Converso com um desabrigado. Ele me diz que Jesus está com os pobres. Claro que sim, concordo. Jesus sempre fica muito ocupado com tantos pobres. Mas é estranho. Uma imensa igreja evangélica bem ao lado, com um teto mais quentinho, fechada, que só abre para os cultos. Fosse eu a revolucionária que sonhei ser, abriria essa igreja para os desalojados.

Me preocupo com eles quando chove. As tendas molhadas, os papelões encharcados. Depois da chuva, dá muito trabalho secar tudo e ajeitar. Flagro um almoço coletivo de frango, feito num fogareiro. Um varal repleto de roupas estendido na calçada. Mais adiante, uma imagem surreal: um homem dorme num carrinho de supermercado. Ele dorme de tênis. E dorme gostoso, o sono dos justos, no seu berço de ferro.

Volto para o meu refúgio de tijolos, protegida da chuva, do medo e do frio. Penso na mulher que está grávida, morando na rua. Como ela dará banho e cuidará do pequeno bebê que já vem? Trafegam carros de muitos mil reais em nossas vias, de muitas preocupações sem sentido.

Cada dia que passo na baixada do Glicério, tem uma tenda nova. Outra fenda na rua que também é terra-mãe. Sinto aumentar a minha admiração por essas pessoas que fazem ninho na calçada.

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