sexta-feira, 26 de abril de 2019

Grãos de areia

Por Mayanna Velame




Abro a janela da sala. Há uma chuva fina e tímida lá fora, caindo sobre a cidade cinza. Muretas cercam o jardim de poucas flores. A terra é tentação para o meu tato. Queria poder tocá-la, senti-la, perceber o solo encharcado; entregue à força da água. Prevejo apenas seres microscópicos que ali devem habitar. São minúsculos, descurados por todos. No entanto, eles vivem  e, de alguma forma, contribuem com algo.


Quanto a mim, abstenho-me de saber. Sou meramente conduzida pelo absurdo da existência (nesse mundo que contrapõe obras ínfimas e colossais). Nas miudezas da vida, podemos encontrar a essência do ser.


Isso é determinado pela forma como abraçamos aquilo que nos convêm. Não sou macro nem micro, mas os entes menores também executam funções. E nós, com tantos erros e desatinos, aceleramos nossos passos. Admirada, eu me pergunto: para quê?


Lá fora, a chuva continua. O solo absorve gotículas d'água  bem como, outrora, já absorveu os raios de sol. Hoje, terra fresca. Ontem, terra bruta e seca. Da aridez, vejo brotar amores. Dizem que um dia voltaremos ao pó. De fato, os vermes ainda experimentarão o sabor da nossa carne.


Nos resta muito pouco. A dimensão terrena se entrelaça nisso: gigantes agora, pequenos amanhã. A matéria nos acolhe. O mesmo chão que tu pisas é onde repousarás na eternidade.


Sangramos diariamente e insistimos em permanecer vivos. Terra é vida, força e lugar. Enquanto o final não chega, buscamos a melhor colheita. A ilusão a tudo permeia. Adubo meu descontentamento, disseminando grãos de areia no universo.


Em cada fôlego, nós regeneramos (como partículas, átomos e células). Do menor, fazemos o maior. E nessa composição, com grandes aspirações, o nada amplia seu significado.


A janela da sala não está fechada. Pingos de chuva batizam essa crônica. De uma letra para uma sílaba, as palavras se formam. São mestras imponentes, que brotam em vidas aflitas. Afinal, como disse Cora Coralina, "coração é terra que ninguém vê".

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