terça-feira, 26 de março de 2019

Crônica da cidade

Por Denise Fernandes




A cidade chove, e fica mais iluminada. Respiro as árvores. São poucas. Precisamos sorvê-las todas, com os olhos, com a pele. Tenho sede da Natureza. Na cidade, cortaram os ramos das goiabeiras, impedindo-nos de comer os frutos. Quase derrapo na calçada esmagada de frutas.

Compro um livro de Mário de Andrade num sebo. Por seus poemas, consigo ver que a cidade continua a mesma. Mudou, mas nada mudou. Sua temperatura oscilante, seu sol castigante, seu vento furioso. Assim, como Mário de Andrade a descreve, também a sinto. Seu espaço infinito, seus braços abertos.

Vou num show em homenagem a Dominguinhos. Não consigo viver na cidade sem ficar contrariada. Monica Salmazo, tão paulista, canta maravilhosamente as canções do Mestre. E a gente sente que ele também passou por aqui, respirou aqui com sua música.

Não posso me libertar da cidade aonde vou, pois é a cidade que me liberta. Sem ela, nada sou. Alguns prefeririam o deserto, ou os mistérios da selva. Mas a cidade que não pode ser imaginada, com sua largura arbitrária, com seu traço inconstante, seu céu-reflexo me penetra. Ela é minha doença, artéria e insônia. A cidade pensa todo mundo de uma vez, enquanto a chuva escorre. Seus rios reprimidos, seu silêncio ausente, a cidade tem mais perguntas que a cabeça da gente.

A cidade transforma mais que a poesia, se faz inimiga e pasto. Não é o dinheiro que move a cidade, mas o tempo em que nos unimos: suas construções, suas ruas devassando a chuva que nos habita. Na cidade, a chuva intriga mais que no campo. Entre pegar ou não o guarda-chuva, não é a nuvem que me avisa. É a vontade do braço, que não quer mais carregar nada. A cidade insustentável me leva. De ônibus, de táxi, de metrô, de trem, pulando obstáculos, torcendo o pé no buraco da calçada. Cada vez tem mais cimento em tudo. Já não mete medo. Sinto no gosto da chuva, o gosto da terra pensando novas sementes. Elas brotariam de novo, se pudessem.

A cidade é linda, como um quadro que sempre se transforma, se aperfeiçoa em novas gentes.

Na cidade, sou mais perplexa. O lixo colorido conta uma história. Ganho sorrisos de desconhecidos, gentileza de estranhos. E tudo passa rápido. Só a cidade permanece em tempo.

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