sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

A tábua de salvação

Por Mayanna Velame




Passava os dedos entre as lombadas dos livros. A maioria deles, esquecidos e empoeirados. O tempo era árduo, uma crise juvenil abatia a moça de dezoito anos, desnorteada após concluir o colegial. Na ânsia de preencher as lacunas do ser, encontrou numa obra intitulada Matéria de Memória, de Carlos Heitor Cony, a sua tábua de salvação. Foi amor literário à primeira vista.


Cony foi redenção: achou em suas linhas, palavras e personagens, um pouco de si e do mundo que estava lá fora. A jovem cresceu, rabiscando crônicas, contos e alguns devaneios. Cony tornou-se o autor predileto e fundamental. Impossível não admirar suas narrativas, torneadas pelo sarcasmo e ironia; mas também pigmentadas magistralmente por seu indescritível lirismo.


Faz quase vinte anos que meus olhos navegaram em Matéria de Memória e, depois deste romance, muitos outros repousaram em mim. Conheci, neste autor, uma nova forma de descortinar a existência, os colapsos humanos, os amores malogrados e a solidão.


O Cony cronista, romancista e contista é imortal  não apenas por ter sido eleito membro da Academia Brasileira de Letras em 2000. Sua imortalidade está inscrita nas páginas que recontam um pouco da vida de cada um de nós.


A Literatura Brasileira perdeu um de seus principais expoentes, porém, seu legado é maior do que qualquer ausência. O estado do Rio de Janeiro, núcleo dos enredos (na maioria das vezes), torna-se pequeno para aqueles que se aventuram nas entrelinhas da imaginação.


Soube de seu falecimento através da mensagem de um amigo, numa manhã ensolarada. No fim da tarde, resolvi caminhar na praia. A brisa, mansamente, acariciava meus cabelos; enquanto as ondas beijavam meus pés descalços. Cerrei os olhos durante alguns minutos e, num momento de epifania, lembrei-me da metáfora que Cony usou para traduzir o mar, em uma de suas histórias: "O mar, ferida aberta, sangrando azul, lá no fim da rua".

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